PEDAGOGIA WALDORF

Textos organizados de Valdemar W. Setzer
Introducao Prevencao de Drogas Educacao e Adm. Escolar Contra o uso de computadores A Obsolencia no Ensino TV e Violencia
Comentarios sobre o Livro Danca do Universo IA - Inteligencia Artificial A Idade de Escolarizacao Educacao e Discipina Aprender a Ser Recursos Escpeciais



A EDUCAÇÃO PODE CONTRIBUIR NA PREVENÇÃO DO CONSUMO DE DROGAS?

Dra. Sonia A.L. Setzer

Clínica Geral (adultos e crianças), médica escolar da Escola Waldorf Rudofl Steiner de 1972 a 1998,
presidente da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica de 1991 a 1999
(Artigo publicado na revista Arte Médica Ampliada, Ano XIX, No. 3: pp. 4 – 11, 1999)

Resumo

Tomando por base as indicações dadas por Rudolf Steiner sobre o desenvolvimento da criança e do jovem, as quais deram origem à Pedagogia Waldorf por ele instituída, tentamos demonstrar nesse artigo que o conhecimento e a aplicação desses ensinamentos oferecem ao ser humano tudo o que ele necessita para um desenvolvimento sadio e harmonioso de sua entidade (corpórea, anímica e espiritual); e que quando, porém, não são observados, dão ensejo a desajustes que podem manifestar-se, entre outros, em drogadicção.
UNITERMOS: setênios, sentidos, níveis de consciência, atividades da alma, Pedagogia Waldorf, drogas.

1. Introdução

Certamente a educação não é um processo terapêutico, mas não podemos ter a mesma certeza quanto ao seu papel preventivo, profilático. E talvez seja na mais tenra idade, quando aparentemente a criancinha "nada percebe", que esse efeito preventivo seja mais intenso. Os frutos de eventuais erros, falhas, omissões, apareceriam então mais tarde.

Atualmente se constata que um número cada vez maior de adolescentes está recorrendo ao uso de drogas, e que isso começa cada vez mais cedo. As perguntas que surgem no sentido de descobrir as possíveis causas têm, muitas vezes, suas respostas em lares desfeitos, pais agressivos, etc. Mas será que estas explicações são suficientes? Será que nos satisfazem plenamente? Diante delas sentimos uma certa impotência, pois sabemos como é difícil agir sobre fatores externos. Podemos sentir pena e compaixão diante da situação, tentaremos proteger nossos próprios filhos das "más companhias", mas o que mais está ao nosso alcance? Podemos questionar de outro modo, levando em conta a própria criança, e não procurando a causa no seu meio ambiente. Por exemplo: será que a criança está sendo compreendida adequadamente no seu processo evolutivo? Estará sendo atendida em todos os âmbitos possíveis - o físico, o anímico, o espiritual? Estará sendo estimulada suficientemente ou um excesso, ou sendo cobrada deficientemente ou em excesso? Muitas outras questões semelhantes podem ser formuladas, e em algumas situações podemos atuar positivamente.

Faremos uma tentativa de esboçar o desenvolvimento sadio da criança de acordo com a visão que nos foi legada por Rudolf Steiner - fundador da Ciência Espiritual ou Antroposofia, no início deste século -, procurando caracterizar quais são as necessidades da criança e do jovem em cada uma das diferentes fases evolutivas e analisar os possíveis desvios que atualmente estão ocorrendo.

Antes de mais nada, cabe salientar que qualquer pessoa que lide com crianças está assumindo o papel de educador. Esta não é uma prerrogativa apenas de professores formados, habilitados a trabalhar com as diferentes faixas etárias. Portanto, como quase todos os adultos têm contato com crianças e jovens, eles deveriam estar bem preparados para não cometer falhas graves. Nesta época da comunicação, em que existem tantas informações disponíveis, não podemos admitir um "crime por omissão" nesse âmbito.

2. O desenvolvimento da criança nos três primeiros setênios

2.1 Os setênios


Na antiga cultura grega costumava-se dividir a vida humana em dez períodos de sete anos ou setênios. No início deste século Rudolf Steiner retomou essa idéia, que hoje fundamenta o ensino das escolas que aplicam a Pedagogia Waldorf (iniciada por Steiner em 1919 na cidade de Stuttgart, Alemanha), mas que também tem larga aplicação nos estudos biográficos realizados por psicólogos e médicos que trabalham orientados pela Antroposofia.

Para o período da infância e adolescência, importam-nos os primeiros três setênios, abrangendo as faixas de 0 a 7 anos, de 7 a 14 anos e de 14 a 21 anos. Naturalmente essas idades são aproximadas, podendo-se notar que hoje em dia muitos fatores antecipam alguns acontecimentos que, não muito tempo atrás, ainda coincidiam com essas idades. Nas considerações que se seguem, abordaremos características marcantes de cada setênio, as quais obviamente não se passam da mesma forma durante a fase toda, havendo aspectos de um período anterior que ainda se manifestam num posterior, bem como antecipações de características futuras.

Costumamos considerar os três primeiros setênios como o período em que a criança e o jovem recebem a educação. Depois disso o adulto ainda pode receber informações importantes para sua vida, como por exemplo no ensino universitário, mas não pode mais ser educado. Todas as falhas e omissões ocorridas na infância e adolescência podem ser compensadas, corrigidas, mas requerem um esforço da própria pessoa. Depois dos 21 anos de idade qualquer mudança, qualquer evolução é possível apenas por meio da auto-educação, um processo nem sempre fácil, e que dura a vida toda.

Podemos notar que ao final de cada setênio a criança ou o jovem alcançou um certo grau de amadurecimento:
· Aos 7 anos, ainda em muitos países, inclusive em nossa rede de ensino público, a criança atingiu a maturidade escolar, isto é, ela está pronta, madura, para receber um ensino, para aprender.
· Aos 14 anos podemos considerar que o jovem está em plena puberdade - ele alcançou a maturidade sexual.
· A grande maioria dos países ocidentais considera que o ser humano é adulto, plenamente responsável por seus atos, aos 21 anos. Fala-se na maioridade ou também na maturidade social.

2.2 A relação da criança e do jovem com o mundo

No primeiro setênio a criança está completamente aberta, entregue ao mundo. Ela ainda não tem experiências nem filtros que lhe permitam bloquear uma impressão advinda dele. Assim como nossos órgãos dos sentidos estão totalmente abertos para o mundo, recebendo as impressões sensoriais de acordo com sua especialidade (audição, visão, paladar, etc.), mas sem possibilidade de elaborar um julgamento – o que já é uma função superior -, também a criancinha é comparável a um grande órgão sensorial. Como ela ainda não desenvolveu as capacidades para analisar, julgar o que a invade por meio dos órgãos sensoriais, nem tampouco sabe como proteger-se de percepções inadequadas, ela armazena tudo isso em seu subconsciente. Cabe, portanto, ao adulto cuidar para que a criancinha esteja num ambiente que não apenas lhe permita ter percepções sensoriais não apenas apropriadas, mas que sejam de natureza a estimular o desenvolvimento sadio dos órgãos dos sentidos. Sabemos que a exposição prolongada a ruídos muito fortes danifica os ouvidos, o mesmo ocorrendo com os outros sentidos.

Tendo adquirido um certo conhecimento do mundo, a criança do segundo setênio agora interage com ele, reagindo com alegria, tristeza, simpatia, antipatia, prazer, desprazer, etc. aos estímulos que lhe chegam. Agora já não são mais tanto os sentidos que necessitam de um cultivo: agora é a vez dos sentimentos. Vivenciando a beleza, o entusiasmo e - porque não? - a tristeza e o feio, que também fazem parte da vida, porém numa intensidade ainda suportável para ela, a criança volta seu interesse para o que a rodeia, identificando-se com o que gosta e rejeitando o que não lhe agrada.

No terceiro setênio o jovem separa-se do mundo porque quer realmente conhecê-lo. Para tanto precisa desenvolver uma objetividade, uma capacidade de fazer observações, comparações, discernimentos, julgamentos. Ele não aceita as coisas simplesmente como lhe são apresentadas, e sim tem uma atitude analítica e crítica; está realmente fechado para o mundo, vendo-o de fora.

2.3 Qual é o método inato de aprendizado?

Se quisermos corrigir ou repreender uma criancinha, de nada adianta apelar para sua razão, "passar-lhe um sermão"; o resultado não será satisfatório. Isso se deve ao fato de no primeiro setênio ela ainda não ter a capacidade de compreender os pensamentos dos adultos traduzidos em conceitos. Ela compreende atitudes, ações, e o seu aprendizado se faz pela imitação. Como já vimos, a criança está totalmente aberta ao mundo e repete tudo o que se passa à sua volta; aliás, é assim que ela aprende a andar, a falar, etc. Disso resulta uma responsabilidade enorme para o educador: sendo o modelo segundo o qual a criança irá portar-se, ele tem de ser um modelo digno de ser imitado. É inconcebível exigir que uma criancinha faça algo que desconheça, ou ainda que deixe de fazer algo que constantemente veja ocorrer à sua volta.

Tampouco no segundo setênio atingiremos a criança satisfatoriamente por meio de explicações conceituais. Nesse período, ela atenderá melhor às solicitações feitas quando seus sentimentos estiverem envolvidos. Ela fará suas lições de casa para agradar à professora (ou não deixá-la triste) e não por compreender que isso seja importante para seu aprendizado. Aliás, agora seu aprendizado se faz pelo interesse, pela admiração que as coisas causam. A tarefa do educador é trazer o mundo á criança de modo que ela se entusiasme pelo que lhe é revelado, tenha profundas vivências na área do sentir. Por outro lado, o educador deve mostrar claramente quais comportamentos da criança lhe agradam e quais considera inadequados. Nessa fase, a postura do adulto deve ser de autoridade amorosa - autoridade no sentido de conhecer o mundo e saber o que é bom ou não para a criança, jamais no sentido do autoritarismo. E por saber o que é bom ou não para a criança, independentemente de sua inclinação pessoal, ele atua de acordo com isso, e não por sua simpatia ou antipatia.

Somente no terceiro setênio o jovem pode ser educado por meio de explicações conceituais, intelectuais; agora ele está em condições de compreender o que o adulto lhe diz (antes a criança compreendia o que o adulto fazia e sentia). Por querer entender tudo que o rodeia, o adolescente espera do educador os elementos necessários para que ele próprio aprenda a observar, julgar, formar uma opinião própria. Nesse momento o aprendizado se faz por meio do julgamento crítico, e o adulto, para poder educar o jovem, deve ser uma pessoa que também procure aprimorar seus conhecimentos com seriedade, procure aperfeiçoar-se; por seu empenho, pelo trabalho que realiza em si, o jovem o considerará alguém digno de respeito – e, inconscientemente, é isso que o adolescente espera dos adultos.

2.4 Os níveis de consciência

A criancinha ainda é um ser bastante inconsciente. Nos primeiros meses de vida passa a maior parte do dia dormindo, e somente aos poucos vai despertando cada vez mais, percebendo melhor seu mundo circundante, para depois interagir com ele. À medida que cresce, seu grau de consciência vai aumentando, e ela se torna mais consciente de si mesma; e no final do terceiro setênio o jovem se nos apresenta bastante consciente de si, do mundo, dos problemas que existem à sua volta, etc. Cabe dizer que ainda na idade adulta podemos continuar a desenvolver nossa consciência, e que esse processo evolutivo nos acompanha até a morte.

2.5 As atividades da alma

Rudolf Steiner nos apontou três atividades que se manifestam e têm seu substrato no corpo, mas cuja origem reside num outro âmbito de nossa existência - a alma - que não consegue ser pesquisado nem demonstrado pela ciência tradicional, mas que todos nós percebemos como uma parte inerente do nosso ser. Trata-se das atividades do pensar, do sentir e do querer. Todos nós temos a experiência imediata do fato de pensarmos, sentirmos e agirmos. Gostaríamos que aqui o termo "querer" fosse entendido como algo relacionado a um ato volitivo, e não a um desejo, pois então estaríamos na esfera do sentir. Podemos relacionar essas três atividades aos graus de consciência: para desenvolvermos a atividade do pensar, temos de estar plenamente conscientes; o sentir se passa num âmbito similar ao do sonho, da semiconsciência, onde parcialmente ficamos entregues e parcialmente temos representações mentais; já atos volitivos dormem, como num estado de inconsciência. Para que isso fique bem claro: nós temos uma representação mental (pensar, consciência) do ato que queremos realizar - por exemplo, pegar uma caneta na mesa; a motivação é consciente, contudo não temos a menor idéia do que se passa em nossos músculos, ossos, articulações, etc., para que o movimento para pegar a caneta seja efetuado - ou seja, ele é realizado de modo totalmente inconsciente para nós. Sabemos muito bem que, para um movimento ser harmonioso e bem executado, quanto maior for o automatismo, melhor. Automatismo significa inconsciência.

Já vimos que no primeiro setênio a criança ainda está bastante inconsciente. Observando bem, notaremos que ela conquista o mundo a partir dos movimentos, que são justamente as manifestações da esfera volitiva. É graças à movimentação que ela adquire a postura ereta, aprende a andar, vai conquistando o espaço tridimensional até estabelecer a dominância de um dos hemisférios cerebrais, por volta dos sete anos de idade. Interessante é notar como no mundo todo as crianças desenvolvem os mesmos jogos, as mesmas brincadeiras infantis. Se repararmos bem, podemos observar que todos eles servem justamente para desenvolver a parte motora, adquirir um domínio sobre o espaço (vivenciar o em cima/embaixo, direita/esquerda, frente/atrás), por meio do pular corda, jogar bola, etc., bem como desenvolver a motricidade fina por meio de jogos como rodar pião, soltar pipa, o jogo dos saquinhos ou das pedrinhas, pega-varetas, etc. Portanto, educar no primeiro setênio significa proporcionar à criancinha todos os meios e possibilidades para que ela possa realizar seu desenvolvimento motor. Como ela aprende a movimentar-se? Imitando!

O segundo setênio é a fase em que se desenvolve principalmente o sentir, uma atividade que transcorre entre polaridades: feio/bonito, prazer/desprazer, simpatia/antipatia, riso/choro, alegria/tristeza, etc. Em nosso organismo essas polaridades manifestam-se principalmente nas atividades rítmicas da respiração e da circulação (inspiração/expiração, sístole/diástole). Estamos no período em que a inconsciência não é mais tão profunda, mas ainda não podemos falar de consciência total: observamos aspectos dos dois extremos, e poderíamos falar de um estado de semiconsciência. Mencionamos antes que a criança reage com seu sentir ao que lhe advém do mundo (ou lhe é relatado sobre ele). Temos que interessá-la, entusiasmá-la, mas se o ensino for muito abstrato, conceitual, estaremos matando essas forças de entusiasmo. Cabe, portanto, ensiná-la de modo que, a partir de vivências que envolvam os sentimentos, ela consiga aprender. Isso é possível por meio das artes. Cumpre lembrar que no período do ensino básico a criança aprende uma série de linguagens: escrita, matemática, línguas estrangeiras, música, pintura, desenho. Nas escolas Waldorf, o término dessa fase se dá com a encenação de uma peça de teatro, em que muitas linguagens diferentes, inclusive a oral, são utilizadas. A expressão mágica para a educação nessa faixa etária é: ter vivências.

Tudo o que a criança experimentou pela motricidade (grossa e fina) no primeiro setênio e pelos sentimentos no segundo setênio quer, no terceiro setênio, ser compreendido mediante conceitos elaborados pelo pensar abstrato. Também a formação de opinião, o discernimento, etc., precisam ser treinados, exercitados. Isso pode levar muitos pais ao desespero. Quando seu filhinho está aprendendo a andar, eles lhe dão a mão até que ele esteja seguro o suficiente para andar sozinho. Por que não fazem o mesmo quando seu filho adolescente está aprendendo a pensar? Ora, ele necessita treinar sua argumentação, e nada melhor do que discutir com os pais, cujas opiniões ele conhece tão bem, defendendo então um ponto de vista oposto. Muitos problemas poderiam ser evitados se pais e educadores vissem muitas atitudes aparentemente rebeldes como uma manifestação de um exercício importante e necessário para o jovem, e agissem de acordo, por exemplo, defendendo pontos de vista que não fossem os seus habituais. Também é muito importante que os jovens se familiarizem com diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto e escolham aquele que estiver mais condizente com seu próprio ser. Caso contrário, ao serem levados a crer que apenas uma opinião seja a correta, eles estarão sendo educados com preconceitos, para serem preconceituosos. Se os adultos não impuserem suas opiniões, mas permitirem que o jovem, em liberdade, escolha a sua própria, estarão respeitando o indivíduo em formação e, ao mesmo tempo, serão respeitados por ele.

Em resumo: numa situação ideal, deve-se oferecer à criança e ao jovem o que estiver adequado ao seu grau evolutivo, respeitando o ritmo de desenvolvimento genérico e individual. Rudolf Steiner ainda indica as qualidades que a criança deve experimentar em seu contato com o mundo: no primeiro setênio, quando ela descobre o mundo através de seus sentidos, este deve parecer-lhe bom; quando, no segundo setênio, os sentimentos moldam a vida da criança, ela deve vivenciar que o mundo é belo; em sua busca de compreensão, por meio do pensar crítico, o jovem no terceiro setênio deve concluir que o mundo (não apenas a natureza, mas também as pessoas que o cercam) é verdadeiro.

3. A realidade em que a criança e o jovem estão inseridos

Olhando à nossa volta, podemos notar facilmente que a sociedade ocidental não está provendo ao ser em desenvolvimento tudo o que ele necessita – seja por não possuir uma imagem completa desse ser, seja porque os adultos estão preocupados com outros assuntos mais prementes, seja por se delegar, desde muito cedo, a educação dos filhos a terceiros, etc. Uma análise sem preconceitos talvez nos mostre que "antigamente" muitas coisas eram melhores.

O estilo de vida da sociedade ocidental está voltado para um consumismo, um conforto, uma concorrência desenfreados, e assim nossos pequenos já são vítimas desde cedo. Poucas semanas após o nascimento do bebê, as mães têm que voltar ao trabalho; as criancinhas são depositadas em creches ou berçários, onde suas necessidades básicas são atendidas - mas, até mesmo pela impossibilidade de atender a um número maior de crianças ao mesmo tempo, muito de seu desenvolvimento motor deixa de ser estimulado. Chegando em casa, os pais têm de cuidar dos afazeres domésticos; nada mais prático do que a "babá eletrônica" para terem sossego. A vida nas grandes cidades, devido às distâncias a serem percorridas e à violência reinante, torna o uso do automóvel uma necessidade, não permitindo que as crianças brinquem na rua. Muitas famílias residem em prédios de apartamentos, muitas vezes restritos, onde a criança não tem espaço para treinar sua motricidade e, para que fique ocupada, assiste à televisão ou brinca com video-games. Neste último caso ocorre realmente muita atividade (na tela), enquanto a própria criança se especializa em executar movimentos mínimos, robotizados, com seus dedos. Por outro lado, na cultura dos sintéticos os sentidos não se desenvolvem: os brinquedos de plástico (duro, frio, liso) não desenvolvem o tato; alimentos muito industrializados têm sabor muito parecido, quando não químico. Já os ruídos em alto volume danificam o órgão auditivo; além disso, quase não se distinguem nuances de cores (já houve povos que conseguiam distinguir centenas de tonalidades de vermelho…); e, muitas vezes, nem mesmo numa floricultura se sente o perfume das flores, eliminado pelo cultivo cheio de substâncias químicas, isso sem falar nos odores de uma grande cidade, que paralisam o olfato em vez de estimulá-lo. Aquilo que deve ser desenvolvido nessa faixa etária - a motricidade grossa e fina, bem como os órgãos dos sentidos - não recebe o alimento necessário, e sabemos que órgãos não-utilizados se acabam atrofiando.

No segundo setênio, as crianças geralmente recebem um ensino intelectual, conceitual, pouco vivencial, e, em vez de se interessarem pelo mundo, acham a escola chata e trabalhosa. Exige-se delas o que elas nem têm condições de dar - porque a abstração faz parte do terceiro setênio -, e deixa-se de desenvolver as capacidades nascentes, criando pessoas com grandes dificuldades ou até incapacidade de desenvolver e lidar com os sentimentos. Com muita freqüência também se estabelece a concorrência (afinal, "a vida é assim mesmo"): cada um quer (ou espera-se dele que queira) ser melhor do que o coleguinha, e em vez de se desenvolverem habilidades sociais criam-se pessoas egoístas, que antes de tudo pensam em seu proveito, mesmo que para isso tenham que arruinar o outro. Além disso, as crianças ficam expostas aos horrores do mundo, da sociedade, à crueldade e à violência, tanto na vida real como principalmente pela mídia – e, em vez de belo, o mundo lhes parece bem horrível. É verdade que não podemos nem devemos criar as crianças numa redoma; mesmo assim, podemos protegê-las de um excesso de vivências negativas, pois algumas são inevitáveis. Um erro bastante comum é deixar que no segundo setênio as crianças tomem decisões e sejam responsáveis pelo que fazem. Nessa faixa etária, ainda são os adultos que sabem o que é bom para elas ou não, e no fundo de seu ser a criança ainda espera ser dirigida por eles, sem muitas explicações, desde que possa confiar nesses adultos. Por outro lado, aos poucos ela pode sentir que suas atitudes têm conseqüências.

Um outro aspecto que chama a atenção, atualmente, é o tipo de lazer que as crianças do segundo setênio têm tido: parecem ser atividades que ainda trinta, quarenta anos atrás cabiam ao terceiro setênio. Se hoje uma criança vai a bailinhos aos nove anos, começa a "ficar" com dez, o que lhe restará fazer quando tiver quinze ou dezoito anos de idade? Se entre sete e catorze anos ela já passou por todas as emoções possíveis (apropriadas ou não para a faixa etária), que tipo de emoção irá procurar na adolescência? Por que tantos jovens praticam esportes 'radicais"? Por que buscam experiências de "quase morte", deixando-se cair dezenas de metros, presos a um cabo elástico? Por que jovens de classe média assaltam, matam e ainda dizem ter estado apenas "brincando" ou querendo saber qual é a "sensação de matar alguém"?

No terceiro setênio, o adolescente encontra-se numa fase em que deixou de ser criança e ainda não é adulto - uma situação realmente complicada. Sua autoconsciência desperta aos poucos, ele sente grande insegurança e necessita de muita compreensão do adulto. Ele começa a dar-se conta de que as gerações anteriores, em vez de melhorarem o mundo, estão a destruí-lo, de que as relações sociais e familiares estão em ruínas, as perspectivas profissionais são pequenas, o desemprego aumenta diariamente e assim por diante. Ele tem tanta força, tanta vontade de mudar as coisas, mas falta-lhe a experiência de vida, e ao tomar atitudes intempestivas é, freqüentemente, mal compreendido. Onde está o mundo verdadeiro? Ele busca ideais – aliás, tem grande necessidade deles, pois quer e precisa lutar por algo -, mas será que os adultos, tão envolvidos consigo mesmos, conseguem interessá-lo em verdadeiros ideais? Querendo ser adulto, ele reivindica (e freqüentemente consegue) muitos "direitos" próprios dos adultos, como obter carteira de motorista aos dezoito anos (até pleiteando que seja possível aos dezesseis), ter direito a voto (de que tipo de discernimento e julgamento ele é capaz, se ainda está desenvolvendo essas capacidades?), mas também lhe são impostos certos "deveres" dos adultos, como o serviço militar. Por outro lado, em nosso país o casamento antes dos 21 anos ainda exige autorização dos pais…

Será que não é por falta de ideais nobres que o jovem acaba criando ídolos para poder "adorar" (cantores, esportistas, gente que consegue realizar algo)? Os movimentos sociais, o movimento hippie dos anos 60, as revoltas estudantis de 1968, o movimento ecológico, a recusa de prestar o serviço militar, o Greenpeace, são alguns dos exemplos das lutas empreendidas pelos jovens neste século, alguns ideais pelos quais até chegaram a dar suas vidas. Justamente quando deveria estar tomando decisões importantes sobre o encaminhamento de seu futuro, o jovem não vê sentido no que o mesmo futuro lhe oferece, se é que lhe oferece algo. Como suportar tudo isso?

4. Fantasia e criatividade

A criancinha, ainda tão pouco consciente do mundo que a rodeia, muitas vezes ainda vive num "mundo de fantasia", o que não está errado. Tanto é que ela pode confundir fantasia e realidade. Essa fantasia pode ser comparada a um mundo de sonhos, e, se atentarmos bem, trata-se de um mundo que se apresenta sob forma de imagens. A criança pequena tem muita facilidade de criar imagens, sendo esse um meio de que podemos dispor na educação. Por meio de histórias inventadas, que descrevam determinadas situações referentes a um comportamento inadequado, podemos educar com muita eficiência, usando uma linguagem compreendida pela criança (as imagens) em vez de explicações moralizantes, que estejam fora do alcance de sua compreensão. Mas também essa capacidade de formar imagens tem de ser treinada e mantida. Por isso as crianças gostam tanto de ouvir histórias, contos-de-fadas. Quanto menos ilustrações houver, quanto mais viva for a descrição feita por quem contar a história, maior será a riqueza de imagens que a criança desenvolverá em seu íntimo. Todavia, os filmes de contos-de-fadas produzem uma paralisia dessa capacidade, pois a imagem vem pronta - a criança não fez esforço algum para produzi-la, e essa imagem é indelével e imutável. Toda vez que ela for se lembrar da Cinderela, mesmo já adulta, surgirá aquela imagem de Walt Disney. Além disso, todas as crianças que assistiram ao mesmo filme ou viram as mesmas imagens em livros guardarão essa mesma imagem, ou seja, produz-se a massificação de imagens. Se, por outro lado, numa classe o professor contar vivamente a história, cada criança criará a sua imagem totalmente individual dos diferentes personagens, desenvolvendo uma vida interior rica e diversificada. Também aqui vale a constatação de que a capacidade se desenvolve com o uso e o treino. A maior agressão à qual as crianças estão expostas, nesse âmbito, é a televisão: as imagens irreais, bidimensionais, chegam prontinhas: basta consumi-las (atitude esperada na sociedade de consumo). Como a criancinha não tem a capacidade para fazer um julgamento crítico, toma tudo isso como realidade, podendo tornar-se uma alienada em relação mundo verdadeiro caso sofra essa influência de maneira excessiva. Quantos acidentes fatais já ocorreram porque as crianças se julgavam capazes das mesmas proezas dos heróis da televisão!

Mas também os adultos necessitam de imagens interiores; é importante, em alguns momentos, "sonhar acordado". Aliás, todo processo artístico, toda criatividade, de um modo geral, está relacionada com a produção de imagens; mas isto só é possível quando essa capacidade é treinada e cultivada. A televisão, os gibis, um excesso de ilustrações, atrofiam essa aptidão. Como, então, um adulto que desde a infância esteja habituado a receber imagens prontas, "de fora", poderá continuar a recebê-las? Essa questão pode ter uma eventual resposta ao estudarmos gráficos realizados nos Estados Unidos, nos quais a curva que representa o aumento do consumo de drogas (na época, principalmente maconha e LSD) acompanha quase paralelamente a curva que representa o aumento de lares possuidores de televisão, com uma defasagem de quinze anos, conforme ouvimos em uma palestra do Dr. L.F.C.Mees, em 1970. Ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial a televisão se tornou cada vez mais popular, invadindo cada vez um número maior de lares, e aproximadamente quinze anos depois (anos sessenta) houve uma grande expansão do consumo de maconha e LSD. Principalmente esta última tem um grande poder de "produzir imagens", muito ricas e coloridas, mas muitas vezes os usuários também perdem qualquer noção de realidade quando estão sob o seu efeito - o que, não raras vezes, tem um desfecho fatal.

5. A educação e as drogas

Estudando o desenvolvimento da criança e do jovem, e fazendo a comparação entre o que seriam as condições ideais de educação e o que realmente ocorre, podemos entender a situação desesperadora em que o jovem se encontra. Sem saber formar imagens, sem ter tido vivências de que o mundo é bom, de que o mundo é belo, e percebendo falsidade, egoísmo, hipocrisia à sua volta, sentindo-se desrespeitado como ser humano (afinal, os adultos inconscientemente o consideram uma ameaça, pois ele vai querer tomar o lugar deles), sua atitude natural será a de rebeldia e/ou fuga. Por que o jovem deve respeitar quem não o respeita? Por que vai querer preservar uma sociedade que não lhe oferece um futuro, sendo-lhe até mesmo hostil? Se ele não conseguir engajar-se por um ideal, no sentido de lutar por profundas mudanças na sociedade, só lhe restará destruir o que existe (vandalismo) ou a si mesmo, seja de forma rápida, com o suicídio, seja de forma lenta, por meio do álcool, das drogas, etc. Não podemos julgar os jovens por estarem fazendo uso de drogas. Muito pelo contrário: quem deve ir a julgamento são os adultos, é a sociedade que evoluiu num sentido de não permitir um desenvolvimento sadio da criança e do jovem.

Muito mais do que um problema individual, com todas as suas conseqüências e desdobramentos, o consumo de drogas é um problema social. Porém esse social não tem a ver apenas com a divisão da sociedade em classes sociais mais ou menos favorecidas; ele envolve toda a humanidade, que deve buscar compreender o ser humano em toda a sua dignidade – afinal, um animal racional não merece mesmo mais atenção do que um bicho qualquer. Os atos deste último são instintivos, previsíveis segundo a espécie, não tendo conseqüências tão destruidoras como os dos homens. Justamente pelos atributos advindos da maior consciência e da autoconsciência, o ser humano pode tornar-se um ser capaz de desenvolver a liberdade, mas isso implica também, e principalmente, em desenvolver a responsabilidade. Por outro lado, a verdadeira liberdade sempre leva em conta o outro, o que significa adquirir uma profunda observação de suas necessidades, o que só é possível com o desenvolvimento de um amor abnegado, altruísta.

Concluímos, portanto, que a prevenção (e talvez cura) do problema seja possível se o ser humano for respeitado como tal, especialmente enquanto ainda estiver em fase de desenvolvimento. A educação deve ter como meta ajudar a criança a tornar-se um adulto livre, responsável, com iniciativa, que respeite a si, aos outros e à natureza. Ela também deve propiciar que o jovem possa desenvolver o verdadeiro amor altruísta, ser capaz de sacrificar-se por uma causa, uma pessoa, deixando seus próprios impulsos num segundo plano, mas sem anular-se como pessoa, como individualidade. Contudo, para educar um outro ser humano nesse sentido o educador também deverá estar, ele próprio, empenhado em alcançar essa meta. O verdadeiro educador aprende muito com as crianças e os jovens, pois sempre tem de estar atento às necessidades destes, sendo criativo para encontrar soluções apropriadas. Nisso reside parte de sua auto-educação. Antes de educar temos de aprender, e o processo educativo faz de cada parceiro alguém que aprende e que ensina. A vida social é uma troca constante, um contínuo dar e receber. Como já vimos, o que não foi aprendido por meio da educação tem de ser conquistado pela auto-educação. Nunca é tarde para começar.

Historia para florescimentos futuros." Ben Okri.