PEDAGOGIA WALDORF

Textos organizados de Valdemar W. Setzer
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Comentarios sobre o Livro Danca do Universo IA - Inteligencia Artificial A Idade de Escolarizacao Educacao e Discipina Aprender a Ser Recursos Escpeciais

IA – Inteligência Artificial ou Imbecilidade Automática?
As máquinas podem pensar e sentir?

Valdemar W. Setzer
Departamento de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo, Brasil
Escrito em 11/2002 – esta é uma tradução do original em inglês, feita por Morgana Ribeiro, por iniciativa de Anderson Paulino, da versão 3.1 de 2/6/2003; última revisão de V.W.Setzer em 27/4/05

Sumário

A visão padrão científica atual do mundo é materialista: sua hipótese fundamental é que o universo é puramente físico, e todos os seus fenômenos devem-se tão somente a processos físicos. Este artigo assume a hipótese de trabalho oposta: há também processos não-físicos. Isso é proposto como uma ampliação da visão científica atual, sem recair em um pensamento religioso, no misticismo, em fé, dogmas ou sectarismo. Evidências são dadas como suporte dessa visão ampliada. Algumas delas são universais, tais como a origem da matéria e da energia; outras são pessoais, tais como a unidade da percepção sensorial, a dependência da percepção em associar o que é percebido a conceitos (considerados como "objetos" não físicos no mundo platônico das idéias), a possibilidade de autodeterminar o próximo pensamento e o livre arbítrio, a subjetividade de sentimentos e particularidades da memória humana. A mente e suas atividades interiores de pensar, sentir e querer são examinadas utilizando tanto suas características gerais como a hipótese de trabalho fundamental, expondo porque elas não podem ser totalmente inseridas em uma máquina. O artigo também abrange o papel essencial do cérebro físico no processo do pensar e a dependência da consciência em relação ao pensar e sentir, com ênfase na autoconsciência. Novas classificações de inteligência e inteligência artificial são propostas. A "sala chinesa" de Searle, o teste de Turing, o xadrez eletrônico e as profecias de Kurzweil são descritos e discutidos. Dois filmes recentes nos quais os papéis de robôs são desempenhados por atores humanos são discutidos, e também suas influências sobre pessoas leigas e crianças. O artigo conclui que considerar seres humanos e seres vivos como máquinas representa um grande perigo para a humanidade e para o mundo, mostrando como a hipóteses fundamental pode ajudar a reverter essa tendência.

1. Introdução

O crescente poder de processar dados dos computadores modernos tem permitido a implementação de tarefas que teriam sido quase impossíveis dez anos atrás. Alguns exemplos foram a derrota do campeão mundial de xadrez pelo Deep Blue da IBM, reconhecimentos de voz, escrita e imagens, etc. Isso fez surgir questões sobre os limites dos computadores: Eles irão substituir toda atividade humana intelectual, talvez até mesmo manual? Vão revelar comportamento inteligente e substituir os seres humanos em tarefas criativas? Exercitarão o mesmo tipo de pensamento e sentimento que os seres humanos têm? Os robôs executarão todas as tarefas dos seres humanos? Eles tornar-se-ão indistinguíveis dos seres humanos? Essas questões deixaram o domínio acadêmico com a exibição de dois filmes recentes, The bicentennial man (O Homem Bicentenário) e Artificial Intelligence (Inteligência Artificial).

Muito tem sido escrito sobre estas questões. O que faço aqui é introduzir uma maneira diferente de abordá-los. Muitos leitores acharão meus argumentos muito estranhos. Quero deixar bem claro que eles não baseados em pensamento místico ou religioso. O leitor sem preconceitos reconhecerá que meus argumentos são conceituais e não emocionais, e são dirigidos ao entendimento comum.

Tenho uma recomendação ao leitor interessado. Quando encarar novas idéias uma pessoa deve tomar uma atitude e três ações: 1. Não ter preconceito, independente do quão estranhas sejam as idéias e as informações. Por exemplo, se alguém tivesse me dito antes de 11/9/2001 que o WTC em Nova York tinha acabado de ser atingido por dois aviões comerciais, eu teria pensado: "Isso parece estranho; jamais aconteceu antes no mundo. Mas irei investigar." Isso também significa estar completamente aberto a receber a informação, deixando críticas para um momento futuro, depois de ter formado uma noção do todo das idéias. 2. Verificar que as novas idéias são consistentes isto é, se não há contradições lógicas entre elas. 3. Verificar que as novas idéias não contradizem o que pode ser observado no mundo, fora e dentro do observador. Por exemplo, se as novas idéias incluem o fato de que algum objeto deixado no ar parado não cai, elas contradizem o que todos podem observar. Se alguém me diz que eu não posso decidir qual será meu próximo pensamento, isto contradiz minha própria experiência interior. 4. Verificar que as novas idéias parecem ser atrativas, isto é, correspondem a um anseio por novos conhecimentos na direção indicada por elas. Esta condição é muito importante, porque é impossível construir uma teoria que seja absolutamente abrangente e explique tudo. Mas isso requer que o leitor vá até o fim, para ver se o todo corresponde a um desejo íntimo por novas explicações.

Um comentário especial sobre o item 3 acima. É muito importante separar fatos científicos de julgamentos científicos. Por exemplo, é um fato ver-se o sol movendo-se pelo céu em um dia claro. A conclusão de que a terra mantém-se no mesmo lugar e que o sol se move em torno dela, ou que o sol mantém-se no mesmo lugar e a terra move-se em torno de seu próprio eixo, são julgamentos (o último corresponde a teorias e experiências cientificas bem fortes).
Se os quatro itens são preenchidos, então a pessoa deve lançar mão das novas idéias como hipótese de trabalho e não como questões de fé ou de dogma. É isto que eu espero dos leitores que terão a coragem de ler minhas idéias até o fim com uma mente sem preconceitos.

A Inteligência Artificial (IA) é baseada em computadores modernos. Portanto, no cap. 2 descrevo o que é um computador, do ponto de vista lógico, caracterizando suas formas de processar dados e o fato de tratar-se de um processamento sintático e não semântico. O pensar é o ponto central quando falamos sobre inteligência e é abordado no cap. 3. Ligado ao pensar examino a intuição, a percepção sensorial, o papel que o cérebro pode ter no processo de pensar, o entender e aprender e a questão do cérebro ser ou não um computador. O cap. 4 trata da inteligência, expondo o que é geralmente entendido acerca deste termo e os vários tipos de inteligência, bem como a minha própria classificação. A questão "as máquinas podem ser inteligentes?" é tratada no cap. 5. Nele descrevo o teste de Turing, bem como suas extensões e os tipos tradicionais e objetivos de pesquisas sobre Inteligência Artificial, abordando novos tipos originais. O cap. 6 trata da questão da possibilidade das máquinas terem sentimentos. Para isso, comparo sentimento com pensamento, mostrando que o primeiro é sempre subjetivo e individual e que o segundo pode ser objetivo e universal. O problema das máquinas terem consciência é tratado no cap. 7 e o cap. 8 trata da questão central dos seres humanos – e seres vivos em geral – serem ou não máquinas. O cap. 9 critica dois filmes recentes de sucesso que descrevem robôs tendo sentimentos, Inteligência Artificial e O Homem Bicentenário, e suas possíveis influências na maneira como as pessoas consideram a si próprias. Finalmente, no cap. 10 apresento minhas conclusões, abordando as preocupações que tenho com a atual visão de muitos cientistas que pesquisam IA de que seres humanos são máquinas e que, portanto podemos introduzir nas máquinas todas as capacidades humanas.

2. O que é um Computador?

Os computadores modernos digitais são máquinas matemáticas, lógico-simbólicas, algorítmicas. Isto significa que o processamento e o efeito de qualquer instrução interpretada em linguagem de máquina (rigorosamente, um computador nunca executa uma instrução, ele a interpreta) pode ser matematicamente descrito, quer dizer, representa uma função matemática. Além disso, a matemática envolvida é restrita: só trabalha com símbolos tirados de um conjunto finito, discreto, para ao qual sempre pode-se atribuir um sistema numérico.

Um programa é uma seqüência de instruções, podendo sempre ser associado a uma função matemática que leva elementos de um conjunto de dados de entrada em elementos de em registro de dados de saída. Defino dados como a representação de símbolos quantificados ou quantificáveis. Chamo algo de quantificável quando, se esse algo passa por um processo de quantificação e é, então, feita uma representação de sua quantificação, não é possível distinguir essa representação do objeto original. Por exemplo, se uma figura é varrida por um scanner e introduzida no computador, que então a imprime e a figura resultante parece a mesma que a original, digo que a tal figura é quantificável, porque dentro do computador todo objeto é representado usando um sistema numérico, isto é, por meio de quantidades. Outros exemplos de dados são textos, sons gravados e animação.

Eu disse que computadores são máquinas algorítmicas. Um algoritmo é uma seqüência finita de ações matematicamente bem definidas que terminam sua execução para qualquer conjunto de valores dos dados inseridos. Um programa de computador pode ser uma seqüência de instruções bem definidas, isto é, válidas. Porém, se esse programa entra durante sua execução em uma série infinita de execuções de ações, certamente com repetições (pois a seqüência de ações é finita), na qual não há nenhuma entrada de novos dados, então não é um algoritmo. Portanto, nem todo programa é a descrição de um algoritmo.

Um programa, é assim, uma seqüência de regras matemáticas sobre como transformar, transportar e armazenar dados. Dentro do computador, os dados são representados como cadeias de símbolos quantificados. Assim, as regras podem ser consideradas como uma sintaxe que é aplicada a essas cadeias. As próprias cadeias sempre seguem uma certa estrutura. Por exemplo, uma cadeia representando um de endereço pode ser composta de três partes, logradouro e número, cidade e CEP. O CEP deve seguir um certo padrão – uma cadeia de cinco dígitos decimais, seguida de um sinal - e de mais uma cadeia com 3 dígitos. Como programas e dados seguem regras sintáticas, pode-se dizer que um computador é uma máquina sintática.

2.1 Dados e Informações

Defini o que são dados. Caracterizo informação como uma abstração que existe apenas em alguma mente humana e tem significado para aquela pessoa (para maiores detalhes, ler meu artigo "Dado, informação, conhecimento e competência" em [Setzer 2002] e no meu site). Isto não é uma definição: não é possível definir o que são "abstração", "mente" e "significado". Um exemplo pode ajudar a entender a diferença entre dados e informações.
Suponha que tenhamos uma tabela com duas colunas representando nomes de cidades e suas temperaturas na data do dia anterior, como essas que saem nos jornais. Há uma linha de cabeçalho com os títulos, textos nas células da primeira coluna, e números nas células da segunda coluna. Suponha que os títulos e os textos estejam escritos em algum idioma que use símbolos especiais para seu alfabeto, por exemplo, o chinês. Para uma pessoa que não conheça o chinês e seus ideogramas, esta tabela nada mais é do que dados. Se não houver linhas, talvez a pessoa nem mesmo reconhecerá ser isto uma tabela. Isto não impede a pessoa de formatá-la, alterando as fontes dos ideogramas – uma ação de processamento de dados. Reconhecendo ser uma tabela, mas não entendendo o que significa e sendo dada uma ordem alfabética para os ideogramas, essa pessoa pode ordenar as linhas de acordo com a coluna de texto ou a coluna de números – também ações de processamento de dados. Todas estas ações seguem regras estruturais exatas, isto é, regras sintáticas.
Agora suponha que a pessoa entenda chinês. Neste caso, ela reconhecerá quais cidades estão sendo descritas e se está frio, morno ou quente em cada uma delas. Esta tabela tem significado para essa pessoa; ela atribui semântica ao conteúdo da tabela. Em minha conceituação, pode-se dizer que a pessoa incorporou os dados, a representação da tabela, como informação. Desse modo, um mesmo dado pode ser apenas um dado para uma pessoa, mas pode representar informação para outra.

Dada essa definição de dados e a essa caracterização de informações, podemos dizer que computadores são máquinas que processam dados. Não são máquinas que processam informações, porque eles não têm nenhum entendimento do que processam. John Searle desenvolveu uma interessante experiência mental para ilustrar este ponto.

2.2 A sala chinesa de Searle

Searle [1991, p. 32] descreve uma sala com uma pessoa, o operador. Muitos cestos com ideogramas chineses estão na sala, assim como um livro de regras, escrito em inglês, de como combinar os ideogramas chineses. A pessoa recebe por um guichê de entrada uma seqüência de ideogramas; utilizando o livro de regras, combina esses ideogramas de entrada e alguns que estão nos cestos, compondo uma nova seqüência, que é então passada para fora da sala através de um guichê de saída. O operador não sabe o que está fazendo; na verdade, ele está respondendo perguntas em chinês. Searle argumenta que há uma distinção essencial entre esse operador e uma pessoa que leia e entenda chinês e responda perguntas sem utilizar um livro de regras. O primeiro está apenas seguindo regras sintáticas, mas o último está associando semântica ao que está fazendo. Searle afirma que a segunda pessoa está fazendo mais do que a primeira, porque entende o que cada pergunta e resposta significa. Ele diz, corretamente, que computadores são simplesmente máquinas sintáticas, combinando símbolos seguindo regras predeterminadas. Assim sendo, um computador pode substituir o operador daquela sala. Mas seres humanos fazem mais, eles associam significado, semântica, ao que eles observam e pensam. Como ele diz: "Há algo mais em ter uma mente do que executar processos formais ou sintáticos." [p. 31.] Conseqüentemente, computadores nunca poderão pensar, porque pensar envolve semântica. Programas não são suficientes para atribuir mentes a computadores. Infelizmente, ele toma significado e semântica de uma forma ingênua, e não elabora sobre esses conceitos. Não acredito na sua premissa: ele diz que "cérebros geram mentes" [p. 39], quer dizer, mentes são meros resultados, conseqüências de nossos cérebros físicos. Veremos que, uma vez que abandonemos esse ponto de vista, é possível elaborar mais no que pode ser entendimento, significado e semântica. O ponto importante agora é que essa premissa não invalida o argumento de sua sala chinesa. De acordo com esse argumento, computadores nunca poderão pensar. Pensar é, portanto, uma atividade central para determinar se as máquinas serão capazes de fazer tudo o que um humano pode fazer, inclusive ter inteligência.

3. O pensar

A atual visão científica do mundo afirma que há apenas processos químicos e físicos no universo, e que eles acontecem somente devido a leis físicas. Vamos chamar esta visão de "materialista". Searle representa esta visão muito bem. Ele diz:
"Suponha que façamos a pergunta que mencionei no começo: 'Uma máquina poderia pensar?' Bem, em um determinado sentido, claro, pois somos todos máquinas. Nós podemos encarar o que há dentro de nossas cabeças como uma máquina de carne. E, é claro, todos nós podemos pensar. Então, em um sentido de 'máquina', isto é, aquele em que máquina é apenas um sistema físico, capaz de executar certos tipos de operações, nesse sentido, todos nós somos máquinas e podemos pensar. Então, trivialmente, há máquinas que podem pensar." [p. 35, meu grifo.]

Há aqui um grande problema lingüístico. Quando dizemos "máquina", queremos nos referir a um dispositivo físico/químico que foi projetado e construído por seres humanos (eventualmente, utilizando outras máquinas ou produtos delas). Mas seres humanos – a propósito, também as plantas e animais – não foram projetados e construído por seres humanos! (Manipulação de DNA não é projetar nem mesmo construir um ser vivo completo.) Portanto, considero absolutamente incorreto afirmar "os seres humanos são máquinas"; seria mais apropriado dentro dessa linha de pensamento considerar os seres humanos simplesmente como seres físicos ("sistemas", para Searle). No cap. 8 eu darei razões explícitas para não considerar seres humanos como máquinas ou seres puramente físicos. De qualquer forma, o que importa aqui é que está claro, a partir de suas palavras e premissa de que cérebros geram mentes, que Searle é essencialmente um materialista.
Um outro materialista é Antônio Damásio. Seu principal argumento é que cérebro mais corpo é a mesma coisa que mente, quer dizer, seres humanos têm apenas cérebros e corpos e não mentes separadas.

"O que eu estou sugerindo é que a mente surge de atividades nos circuitos nervosos…" [1994, p. 226]. "Entretanto, a minha visão de mente verdadeiramente corporificada, não renuncia a seus níveis mais altos de operação, aqueles que constituem a sua alma e espírito. Na minha perspectiva, acontece apenas que a alma e o espírito, com toda a sua dignidade e escala humana, são agora estados complexos e únicos de um organismo." [p. 252.]

John L. Pollock é absolutamente claro nessa posição:
"Meu propósito geral neste livro é defender o conceito do ser humano como uma máquina inteligente. Especificamente, vou argumentar que estados mentais são estados físicos e pessoas são objetos físicos. [1989, p. 1]

John Haugeland escreve:
"O objetivo fundamental desta pesquisa [Inteligência Artificial] não é meramente imitar inteligência ou produzir uma impostura esperta [clever fake]. De jeito algum. 'AI' quer apenas o artigo genuíno: máquinas com mentes, no sentido completo e literal. Isso não é ficção científica, mas ciência real, baseada em um conceito teórico tão temerário [daring] quanto o seu desafio: o de que somos, no fundo, computadores. Essa idéia – a idéia de que pensar e computar são radicalmente a mesma coisa – é o tema deste livro." [1987, p. 2, seus grifos].

Aqui está o que diz o evolucionista Richard Dawkins:
"Somos máquinas de sobrevivência – robôs cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes. Isso é uma verdade que me deixa cheio de admiração." [1989, p. 23; ver também pp. 55, 75, 105]. "O argumento deste livro é que nós, e todos os demais animais, somos máquinas criadas pelos nossos genes." [p. 29.]
Estes são apenas cinco exemplos; conjeturo que a maioria dos cientistas atuais, em todos os campos, segue a visão materialista do mundo; contudo, há honrosas exceções. Por exemplo, ninguém menos do que Roger Penrose admite a existência de um mundo platônico não físico das idéias matemáticas [1991, pp. 97, 428].

Alguém pode ouvir muitos cientistas dizendo: "Eu acredito em Deus". Não considero essa uma posição que caracteriza esta pessoa como não-materialista. O que importa é a maneira como a pessoa pensa. Se toda a sua argumentação está baseada em conceitos físico-químicos, então eu a classifico como materialista. Nessa linha, eu também considero muitos, provavelmente a maior parte das pessoas religiosas, como sendo materialistas. Observe-se apenas quantos deles dão muita importância à sua vestimenta especial ou cortes de cabelo, ou ao lugar físico de culto, aspectos puramente materiais. Qualquer fundamentalismo religioso, com a típica falta de respeito físico a pessoas de fora da sua fé, com casos extremos de matar os hereges, só pode estar baseado no mais grosseiro materialismo.

Uma das conseqüências da visão materialista do mundo é que o pensar é considerado como uma conseqüência de processos nervosos dentro do cérebro, sendo por determinado por eles. É importante reconhecer o fato que o único conhecimento que temos na atualidade dos processos de pensamento é de que certas áreas do cérebro são mais ativas do que outras quando certos tipos de pensamentos, sentimentos, percepções ou lembranças são exercitados. Não fazemos idéia de como as lembranças são exatamente arquivadas, ou de como produzimos 2 + 3 ou lembramos desse resultado. Assim, não há bases científicas sólidas para considerar o pensar como um processo gerado pelo cérebro.

3.1 Pontos de vista sobre o problema mente-máquina


Como já vimos, Searle é contrário à idéia de que computadores terão algum dia as capacidades plenas da mente. Seu maior argumento é que compreender é uma característica essencial das mentes; sua alegoria da sala chinesa mostrou que processamentos complexos são feitos por computadores de uma forma puramente sintática. Sendo máquinas sintáticas, computadores nunca terão mentes, pois estas têm capacidades semânticas.

Há outros pontos de vistas contra o fato de a mente ser uma máquina. Um deles é representado por James Fetzer, que baseia suas considerações na semiótica de Peirce, a teoria dos símbolos [2001, pp. 117, 137, 156]. Ele não concorda com o conceito de que a mente é um dispositivo computacional [pp. 125, 176].

Outro importante autor que considera que as mentes não são máquinas é Roger Penrose. Seu principal argumento é que "nosso pensamento consciente parece ser algo não-algorítmico." [1991, p. 412; ver também p. 439].

3.2 Meu ponto de vista acerca do pensar

Meu ponto de vista é: o pensar não é um processo físico, isto é, não pode ser reduzido a um processo puramente físico-químico. Há características especiais no processo de pensar que me levam a esta conclusão. Muitas delas foram levantadas pelo pensador Rudolf Steiner, na sua obra-prima A Filosofia da Liberdade [2000], inicialmente publicada no final do século 19, como extensão de sua tese de doutorado. Steiner foi o primeiro a atribuir à atividade de pensar a mais fundamental importância da vida humana moderna. Naquele livro ele faz uma profunda análise desse processo. Por exemplo, ele chama atenção para o fato de que o pensar é auto-reflexivo: é possível pensar sobre o pensar [p. 33]. Todas as nossas outras atividades envolvem outro objeto, como por exemplo a digestão: digerimos a comida e não a digestão em si. Vemos um objeto e não a visão em si, ou o próprio processo de visão. Em geral, não pensamos sobre o processo de pensar, isto é, não estamos conscientes do nosso pensar. Isso vem do fato de que nossos pensamentos são geralmente direcionados aos objetos que percebemos com nossos sentidos, ou estamos associando conceitos [p. 35].

O pensar é auto-sustentável: não é necessário usar nenhuma outra atividade interna quando pensamos sobre o pensar:
"Todas as outras coisas e todos os outros acontecimentos existem sem mim; não sei se existem verdade ou fantasia enganosa, ou bem como sonho. Só de uma única coisa sei com segurança incondicional, visto que eu mesmo a levo à sua existência segura: meu pensar." [p. 38.]

De acordo com Steiner, foi essa característica que levou Descartes a formular seu famoso "cogito, ergo sum":
"Para qualquer pessoa que possui a faculdade de observar o pensar ..., essa é a observação mais importante que ele pode fazer, pois observa algo que ela mesmo engendra; não se vê diante de um objeto que lhe é estranho, mas sim diante de sua própria atividade. Sabe, portanto, como se origina o que observa. Discerne com clareza as relações e as conexões. Encontrou-se, assim, um firme ponto de apoio no qual se pode basear a compreensão e a explicação das outras coisas." [p. 37.] "O enunciado mais simples que posso emitir sobre uma coisa é que ela existe." [p. 38, grifo do autor.]

Baseado na autoreflexão e na autosustentabilidade do pensar, formulei como autodeterminação outra de suas características únicas: o fato de podermos decidir qual será nosso próximo pensamento e exercê-lo de fato. Cada pessoa deve chegar a essa conclusão por experiência própria: não é possível prová-lo, porque ninguém pode saber o que outra pessoa está pensando. Para isso, eu proponho a seguinte experiência mental: sente-se em um lugar quieto e feche-se os olhos; tente-se produzir uma calma interior, quer dizer, sem ser atraído por percepções sensoriais externas, ignorando problemas urgentes e imergindo interiormente em si mesmo. Há um sentimento especial relacionado a esse estado interior de calma. Uma vez sentindo esta calma interior, imagine-se um mostrador no qual números vermelhos podem ser vistos. Agora imagine-se que o número 100 é exibido lá, depois o 99, o 98, etc. até o 0. O exercício consiste em se concentrar imaginando estes números e evitando qualquer outro pensamento. Um contra-exemplo poderia ser imaginar os números até 97, e de repente lembrar-se que em 1997 algo muito importante aconteceu na própria vida: houve, por exemplo, uma mudança de emprego. Daí talvez venha o pensamento de como se sentia mal no emprego anterior e como é satisfatório o emprego atual: o salário aumentou, então decidiu-se comprar a casa atual, onde houve espaço bastante para instalar o escritório em casa, com alguns quadros bonitos, etc. Podemos observar que o objetivo inicial, concentrar-se apenas naqueles números, desapareceu de há muito. Uma característica interessante desse exercício é que se pode repeti-lo com freqüência, notando-se como a concentração mental melhora e com ela a habilidade geral de controlar o pensamento.

Neste ponto, a razão principal para tentar este exercício é reconhecer ser possível controlar, pelo menos por alguns segundos, o próprio pensamento, isto é, determinar o próximo pensamento. Então tornamo-nos conscientes do fato de que no pensamento temos autodeterminação. Não há nenhuma máquina, nem mesmo uma abstrata, que tenha esta característica autodeterminante. Máquinas inexoravelmente seguem seus programas ou mecanismos.

Máquinas abstratas são máquinas formais, matemáticas, digitais. Todas podem ser reduzidas a (ou simuladas por) uma máquina de Turing (MT), uma máquina que em cada instante está em um determinado estado, dentre um número finito de estados. Ela utiliza uma fita infinita dividida em células. Cada célula pode estar em branco, ou conter um símbolo de um alfabeto finito. A máquina tem uma cabeça de leitura e de gravação, que está sempre sobre uma única célula da fita. Uma instrução da máquina é executada da seguinte maneira: estando em um determinado estado, a cabeça lê o símbolo na célula da fita que está sob ela; baseada neste símbolo e no seu estado atual, a máquina grava outro (ou o mesmo) símbolo do alfabeto na célula que está sob ela; em seguida, a máquina move a cabeça (ou a fita) para a direita e para a esquerda e finalmente muda para outro estado. A seguir, uma nova instrução é executada exatamente com a mesma seqüência, até que a máquina chegue a um estado especial designado como estado final, ou uma instrução não possa ser executada, isto é, no estado atual não existe instrução que reconheça o símbolo da fita. De acordo com a chamada tese de Church-Turing, qualquer procedimento eficaz – inclusive o cálculo de funções matemáticas – pode ser executado por meio da máquina Turing. Qualquer computador real pode ser simulado por meio de uma MT, isto é, uma MT poder ser programada para aceitar um programa na linguagem de máquina do computador, e alguns dados de entrada, ambos gravados na fita, produzindo exatamente os mesmos dados de saída que o computador geraria para aqueles dados de entrada. Além do mais, uma MT pode imitar qualquer outra MT; esta é a razão pela qual ela é chama de máquina universal.

Obviamente uma MT, ou qualquer outra máquina digital, seja abstrata ou concreta, seguem seu programa, ou seja, não é autodeterminada. Uma pessoa pode objetar que, quando fazemos o exercício do mostrador de números, também estamos seguindo um programa. A resposta a esta questão é que não é possível dizer se temos um programa armazenado no cérebro –nem mesmo sabe-se como é "armazenado" no cérebro um número como o 2 –, e, o mais importante de tudo, nós não sentimos como se estivéssemos seguindo um programa predeterminado. Por exemplo, nossa sensação é de que decidimos executar o exercício de concentração mental e que em cada momento decidimos permanecer nele, determinando nosso próximo pensamento – pelo menos durante alguns momentos. Não há nada que nos force a seguir o modelo do exercício, porque não há absolutamente nenhuma necessidade de executá-lo.

Reconhecendo que somos capazes de determinar nosso próximo pensamento, devemos concluir que nosso pensamento não é executado por um sistema meramente físico, porque tal sistema teria que seguir seus princípios físicos, seguindo leis inexoráveis, levando ao determinismo ou, na melhor das hipóteses, a alguns efeitos aleatórios. Mas como vimos, podemos reconhecer que não estamos sempre determinados, mas podemos autodeterminar algumas de nossas atividades interiores; por outro lado, não temos a sensação de que nosso pensamento é sempre aleatório, pois se assim o fosse não seriamos capazes de escolher nosso próximo pensamento. Há então três possibilidades: ou o cérebro produz nossos pensamentos, mas não é uma máquina, ou o cérebro é uma máquina, mas não produz nossos pensamentos, ou o cérebro não é uma máquina e não produz nossos pensamentos. Na minha opinião, a última hipótese é a mais provável: considerando que nosso pensamento não é físico e não é gerado pelo cérebro, mas obviamente influencia a sua atividade, o cérebro tem de ser influenciado por algum processo não-físico, portanto ele deve ser constituído de tal modo que as leis físicas devem em certo processos deixar lugar para a atuação do pensamento não-físico. Na seção 3.5, abordo essa questão do não-físico influenciar o físico, e exponho o porquê do cérebro ser necessário.

As três possibilidades contradizem a afirmação de Searle acerca do cérebro ser um sistema puramente físico.

Espero que o leitor tenha executado o exercício mental descrito, tendo-se convencido que no pensar podemos ser livres, pelo menos por alguns segundos. Esta sensação de liberdade vem precisamente do fato de reconhecermos nossa habilidade de determinar nosso próximo pensamento. Se nosso cérebro fosse uma máquina ele teria de ser sujeito a leis físicas. Mas as leis físicas são inexoráveis: elas não podem levar à liberdade.

A liberdade requer autoconsciência. Um bêbado não é livre, porque ele não está totalmente consciente do que está pensando e fazendo [Steiner 2000, p. 18]. Uma cuidadosa observação pode mostrar que animais têm consciência, mas não têm autoconsciência. Apenas seres humanos podem ser autoconscientes, devido à sua capacidade de pensar. Eles estão constantemente introduzindo novidades no mundo; animais e plantas apenas seguem seus "programas" interiores e condicionamentos do ambiente. Nenhuma abelha jamais parou para pensar que pudesse tentar uma forma diferente de colméia que não fosse hexagonal.

A essência de nosso presente questionamento é o que é o pensar. Vejamos como ele se manifesta.

3.3 Xadrez eletrônico e intuição

Em 1997, a máquina IBM Deep Blue (DB) ganhou um torneio de xadrez do campeão do mundo Kasparov (K). DB venceu dois jogos, K venceu 1 jogo, e houve três empates (um total de 3,5 contra 2,5 pontos). Muitas pessoas celebraram, dizendo que as máquinas haviam suplantado os seres humanos. Porém, se examinarmos as condições da partida, chegaremos a uma conclusão um tanto diferente. Para maiores detalhes, ver meu ensaio sobre xadrez e computador [Setzer 1999].
A primeira consideração é que xadrez é um jogo matemático. Os tabuleiros, a posição das figuras e as regras do jogo podem ser todas matematicamente descritas. Por exemplo, a descrição da posição das figuras usa um sistema matemático de coordenadas em duas dimensões.

DB era uma máquina altamente paralela, especializada em jogar xadrez, que podia testar 36 bilhões de movimentos no tempo atribuído de três minutos para cada um deles. Além disso, ela tinha jogos anteriores de Kasparov gravados na sua unidade de armazenamento, tentando fazer correspondência entre cada posição do tabuleiro com aqueles jogos, fazendo assim, em certas situações, movimentos adequados, que haviam sido planejados com antecedência. Usualmente, em jogos como o xadrez, se o próximo lance deve ser dado pelo computador, este para um dado estado do jogo, isto é, no caso, as posições das peças no tabuleiro, todos os possíveis movimentos que a máquina pode fazer, levando cada um a um novo estado; para cada novo estado, são testados todos os possíveis movimentos que o oponente pode fazer, levando cada um a um novo estado; para cada um destes, são calculados os possíveis movimentos a serem produzidos pela máquina e assim por diante. Tais jogos podem ser descritos como uma "árvore" virtual com nós de onde saem ramos. Cada nó representa um estado do jogo. Num certo instante deste, o nó que faz o papel de raiz da árvore representa o estado atual e cada ramo que sai dele representa um possível movimento do jogo que um dos jogadores pode fazer. O nó no final de cada ramo representa o estado do jogo depois do movimento descrito pelo ramo, constituindo um novo nível da "árvore". Desse nó, surgem ramos, representando os possíveis movimentos do oponente em resposta ao movimento do primeiro jogador e assim por diante. Considerando-se, para simplificar, que em cada estado há um número fixo de n possíveis movimentos, essa árvore cresce exponencialmente, pois a partir daquele estado chega-se a n nós, no próximo nível haverá n2 nós, no nível seguinte n3 nós, etc. O problema é usar alguma estratégia para "podar" a "árvore", eliminando-se alguns ramos que representam alguns claros movimentos que levam a uma posição inferior, de forma que poucas combinações tenham que ser testadas, isto é, tenta-se reduzir o valor de n em cada nó. DB era tão poderosa que seus criadores decidiram não utilizar técnicas de "poda" e deixaram a máquina testar todos os movimentos possíveis. O raciocínio por trás dessa decisão era que a máquina era tão rápida, que seria melhor deixá-la testar cada combinação do que evitar ("podar") alguns movimentos que poderiam beneficiar alguém no futuro.

Quantos movimentos K testava mentalmente antes de mover uma peça? Talvez vinte, talvez cinqüenta. Como foi possível que uma máquina matemática, jogando um jogo matemático, sendo capaz de calcular busilhões de movimentos mais do que um ser humano, perder um jogo e obter apenas um empate nos três demais? A resposta é clara: K, como um grande mestre, não estava testando os possíveis movimentos. Ele não estava calculando. Estava usando sua intuição para rapidamente imaginar alguns bons movimentos e eventualmente testá-los mentalmente.

Intuição é uma centelha de pensamento, um insight – uma visão interior de uma situação que não é vista no mundo físico. Um dos aspectos interessantes da intuição é que seu processo não pode ser descrito. Ela corresponde a ter alguns pensamentos vindos de lugar nenhum. Neste sentido, a intuição é absolutamente anticientífica – no entendimento comum dessa palavra.

3.4 Percepção sensorial e pensamento

Todos podem notar que a percepção sensorial está sempre acompanhada de pensamento. Mas a conexão entre os dois é mais profunda do que a aparência pode mostrar. Eu gostaria de sugerir que o leitor fizesse uma experiência. Por favor, olhe para a porta de entrada de sua sala. O que percebe visualmente? Tente responder a essa pergunta antes de continuar até o próximo parágrafo (estou deixando algumas linhas em branco antes dele). Seria interessante escrever sua resposta antes de ler o que segue.

Quando eu faço palestras sobre o assunto deste artigo, aponto para a entrada da sala e peço à platéia para responder a essa pergunta. Invariavelmente, todos respondem que estão percebendo uma porta. Repito a questão e pergunto se há alguém que não está percebendo uma porta. Ninguém levanta a mão. Então eu digo à platéia que infelizmente estão todos errados. Ninguém está percebendo uma porta; o que cada um vê são impulsos luminoso, provenientes de cores e diferenças de cores, talvez ainda a sensação de diferença de profundidade devido à visão estereoscópica. "Porta" é um conceito. Conceitos não podem ser vistos com órgãos sensoriais, porque eles não existem no mundo físico. Eles são percebidos com o pensamento. Foi Rudolf Steiner que chamou a atenção para o fato de o pensamento poder ser considerado como uma ponte, entre a nossa percepção interior (representação mental) de objetos externos no mundo físico e conceitos no mundo das idéias [2000, p. 71]. Mas estes não são o mundo físico. Isto é absolutamente claro no caso de conceitos matemáticos, como apontado por Roger Penrose [1989, p. 428]. Por exemplo, ninguém nunca viu uma circunferência perfeita (o local geométrico de todos os pontos eqüidistantes de um determinado ponto, o seu centro). Esse conceito é o mesmo para todas as pessoas; de fato, não depende de ninguém e é eterno. Ele reside no mundo platônico das idéias e é percebido por diferentes pessoas com a mesma objetividade que eles vêem um objeto no mundo físico. De fato, parece que a objetividade na percepção das idéias pode ser maior do que a percepção dos objetos no mundo físico porque, por exemplo, os órgãos sensoriais diferem de pessoa para pessoa (p. ex. meu dois olhos vêem cores levemente diferentes). Mas o conceito de uma circunferência perfeita é exatamente o mesmo para todos que adquiriram a habilidade de perceber conceitos matemáticos.
Muitas pessoas, certamente todas materialistas, diriam que conceitos não são realidades no mundo platônico das idéias, mas que estão "armazenados" ou são "gerados" em algum lugar no cérebro. Por exemplo, Ray Jackendoff coloca isso da seguinte maneira:
"... eu penso no significado de palavras como instâncias, em grande parte, em um subsistema particular de organização combinatória do cérebro ao qual chamo de estrutura conceitual." [1993, p. 54, seu grifo.]

Infelizmente para os materialistas, isso não é um fato cientifico, isto é uma especulação, porque eles não podem mostrar, como já referi, onde e como um simples conceito tal como "dois" é armazenado no cérebro. Há muitas evidências da existência daquele mundo platônico. Por exemplo, como puderam Darwin e Russel Wallace, que eram quase antípodas (este último viveu na Nova Zelândia), terem desenvolvido no mesmo espaço de tempo a idéia da seleção natural? Esta e outras "coincidências" podem ser explicadas pelo fato de que ambos estavam percebendo a mesma idéia no mundo dos conceitos. Rupert Sheldrade, reconhecendo tal fenômeno, usa a noção de "campo morfogenético", que penetra tudo, de átomos a organismos vivos [1987, pp. 12, 76]. Este campo seria, por exemplo, responsável por formas orgânicas, no que ele denominou "causa formativa" (formative causation) [pp. 13, 88, 116]. Aprecio seu esforço em desviar-se dos paradigmas tradicionais da ciência atual, mas não concordo com seu princípio básico que seu campo morfogenético é físico [p. 115], resultado da visão materialista do mundo expressa no livro citado.

Estou ciente do fato que os materialistas irão questionar que minha suposição para a existência de um mundo platônico de idéias "real" é também uma especulação. Felizmente, ninguém pode provar que o outro não está certo, do contrário os espiritualistas poderiam provar a existência do mundo não-físico, ou os materialistas poderiam provar que o mundo não-físico não existe. Penso que isso envolve um mistério, ligado ao que eu chamo hipótese existencial fundamental: assumir ou a hipótese de que existe um mundo não-físico "real", ou a de que esse mundo não existe. Usei a palavra "felizmente" acima, porque nós estamos livres para escolher qualquer uma das duas; essa escolha parece-me ser a mais fundamental hipótese existencial que deveria ser feita por cada pessoa. Para mim, as evidências da primeira hipótese – muitas das quais são confirmadas pelas minhas próprias vivências interiores e cada um deveria examinar as suas próprias – são esmagadoras. Nesse sentido, é importante lembrar-se do que escrevi na introdução, considerando como uma pessoa deve encarar novas idéias.

De acordo com Steiner, o pensar pode ser considerado como um órgão para perceber aquilo que não é físico, o mundo platônico de conceitos ou idéias [2000, p. 95]. O pensar completa a percepção instantânea e parcial que temos dos objetos externos [p. 69], ligando-nos ao das Ding an sich de Kant, a coisa em si mesma, o seu noumenon, a essência do objeto percebido como oposta ao fenômeno observado. Kant escreveu que nós nunca podemos alcançar o Ding an sich de cada coisa, porque o nosso pensar é um processo mecânico, por isso é limitado:
"A crítica da razão pura … não nos permite criar para nós mesmos um novo campo de objetos além dos que nos são apresentados como fenômenos e divagá-lo em palavras inteligíveis; não, ela nem mesmo nos permite um esforço para formar nem mesmo uma conceituação deles. … Resta um modo de determinar o objeto como mero pensamento, que é realmente apenas uma forma lógica sem conteúdo que, contudo, parece-nos ser um modo da existência do objeto em si mesmo (noumenon), sem considerar a intuição, que é limitada pelos nossos sentidos." [Kant 1952, p. 107]
"... a razão especulativa não pode nunca … ultrapassar os limites das experiências possíveis … ela não deve tentar elevar-se sobre a esfera da experiência, além da qual nada permanece para nós a não ser o vazio fútil." [p. 209.]
Steiner desfez as limitações do pensar, chamando a atenção para o fato de que ele pode perceber a essência, o conceito de cada objeto, e que essa essência não está no mundo físico. Mas, para isso, é necessário admitir a hipótese de que há um mundo não-físico. Infelizmente, o materialismo impediu os cientistas e acadêmicos de formularem esta simples hipótese, que ampliaria enormemente a pesquisa científica, a interpretação da história, as ciências teóricas e aplicadas, e assim por diante. Muitos cientistas têm preconceitos – o que é contrário ao verdadeiro espírito científico. Outros temem que ao deixar a trilha materialista venham a perder sua objetividade e fiquem sujeitos à fé e a dogmas. Steiner mostrou que esse não é o caso. Seu monumental trabalho conceitual resultou em aplicações práticas que vêm sendo exercidas por mais de 85 anos em muitos aspectos da vida cotidiana (educação, terapia educacional, medicina, várias terapias, agricultura, arte, arquitetura, organização social, etc.). Vale a pena deixar de lado o preconceito materialista e tentar imergir em seu vasto trabalho e aplicações, de forma a melhor julgar a validade de suas idéias, principalmente em termos do que escrevi na introdução.
No mundo não-físico dos conceitos, alguns destes estão ligados a outros; nosso pensamento é também capaz de perceber esta conexão, através de associações mentais.

De volta à percepção sensorial, é importante notar que mesmo que nossos sentidos estejam transmitindo algo a nós, nós não percebemos nada se não formos capazes de associar a percepção a algum conceito. O fascinante livro sobre luz de Arthur Zajonc descreve o fato de que uma pessoa que nunca havia visto nada; uma vez operada, e com visão normal, não passa a ver os objetos [1995, pp. 3, 183]: esta pessoa tem que aprender a fazer a associação entre sua percepção interior e o conceito correspondente. Ele conta um caso publicado sobre uma pessoa chamada S.B., um homem de 50 anos de idade, cego desde os dez meses de idade, inteligente e independente, o qual trabalhava consertando botas. Em 9 de dezembro de 1958 e em 1º de janeiro de 1959 ele recebeu transplantes de córneas.

"Examinando-o cerca de um mês após suas operações, [os autores, os psicólogos] Gregory e Wallace perguntaram a ele sobre sua primeira experiência visual após a operação. S.B. respondeu dizendo que ele ouviu uma voz, a voz do cirurgião, vindo de diante dele e de um lado. Virando-se em direção ao som ele viu algo embaçado. Rostos, mesmo muito tempo após a operação, nunca foram fáceis de perceber, relatou S.B. A pesquisa de Gregory e Wallace com S.B. (e pesquisas similares anteriores e posteriores) deixaram claro que aprender a ver quando já se é adulto não é nada fácil.

Depois de sua alta do hospital, Gregory and Wallace levaram S.B. a um museu de ciência e tecnologia. S.B. tinha um interesse demorado em ferramentas e ficou claramente excitado com a probabilidade de ver o que, até então, ele só havia manuseado ou ouvido por meio de descrições. Eles levaram-no a um torno de fazer parafusos e pediram que ele dissesse o que era aquilo que estava à sua frente. Obviamente decepcionado, S.B. não pôde dizer nada. Reclamou que não podia ver o metal ser trabalhado. Então ele foi trazido para mais perto e deixaram-no tocar no torno. Ele correu seus dedos avidamente sobre o torno com seus olhos bem fechados. Então ele se distanciou um pouco e, abrindo seus olhos, declarou, 'Agora que eu o senti, posso vê-lo.'

No caso de S.B. o lento processo de aprender a ver continuou pelos próximos dois anos, até a sua morte." [p. 3]
Em minhas palestras sobre esse assunto, uso o conhecido exemplo da figura de um hexágono perfeito dividido pelas três diagonais em seis triângulos eqüiláteros. Mostro-a à platéia e pergunto o que todos estão vendo. Freqüentemente as pessoas respondem "um hexágono", "seis triângulos", alguns reconhecem uma pirâmide vista de cima. Eu chamo atenção para o fato de que tudo isso são conceitos e que, uma vez feita a associação com o conceito por uma pessoa, ela pode facilmente ver a figura correspondente. Em geral, apenas aqueles que conhecem o "truque" dizem ver um cubo. Então, sobrepondo transparências, eu lhes mostro um dos possíveis cubos e então o outro. Peço-lhes que façam um exercício de olhar para a figura original do hexágono como as diagonais e mudar de um cubo para o outro. Fazendo este exercício, o leitor também notará um fenômeno bem peculiar. É necessário imaginar, por meio do pensamento, um dos cubos para poder "vê-lo"; em seguida, a pessoa deve fazer um esforço interior para imaginar o outro cubo e então poder vê-lo. Torna-se claro que há um processo mental de "chaveamento" entre um cubo e outro, isto é, entre os conceitos de um cubo visto em duas diferentes posições. Um dos meus alunos ficou tão entusiasmado com isso que desenhou um grande hexágono e o colou no teto sobre sua cama, de forma a poder repetir o exercício muitas vezes sempre que fosse deitar.

Zajonc também menciona o fato de que a percepção da perspectiva linear nas figuras dá uma impressão de realidade simplesmente devido a um efeito cultural (a perspectiva linear começou a ser estudada e amplamente utilizada no começo do século XV) [p. 64]. Eu uso o exemplo dos trilhos de uma estrada de ferro. Se um adulto desenha dois trilhos de trem, ele desenha duas linhas, levemente inclinadas em relação à vertical, não paralelas mas convergindo cada vez mais e mais; segmentos de linhas horizontais, diminuindo de comprimento, unem os trilhos, para dar a impressão de dormentes. A maior distância entre os trilhos fica geralmente na parte de baixo do desenho.

Por que a maioria dos adultos desenha trilhos dessa maneira, em perspectiva? Porque é assim que eles a vêem. É uma ilusão de óptica. A realidade é que os trilhos nunca se encontram; se alguém anda entre eles, vê que eles mantêm sempre a mesma distância. Para desenhar trilhos como linhas que convergem, é necessário abstrair-se da realidade, ou de sua imagem mental ideal e fixar-se na ilusão de óptica proveniente da percepção visual. Mas isso requer uma certa capacidade de abstração. Uma criança pequena que não seja precocemente intelectualizada (infelizmente, muito comum hoje em dia!), ou uma pessoa de uma tribo primitiva, não desenha trilhos convergentes, mas paralelos. Inversamente, muitas dessas pessoas não conseguem reconhecer, de um desenho em perspectiva, o que ele representa. Zajonc descreve uma experiência interessante de mostrar a pessoas primitivas na África o desenho de um elefante visto de cima [pp. 63-64]. Tanto adultos como crianças preferiam a figura da esquerda (elefante "dividido"), isto é, não aquela desenhada com a perspectiva adequada; esta era considerada como "saltando por aí perigosamente" ("jumping about dangerously"):

Até o século 15 era raro encontrar perspectiva linear em pinturas – veja-se por exemplo os ícones orientais ou as pinturas medievais com estradas, quartos, casas, alamedas com árvores, etc. A perspectiva linear requer a habilidade de associar a ilusão de óptica do desenho ao verdadeiro conceito da realidade sendo apresentada. Essa habilidade não é inata, ela é adquirida através da observação de figuras e desenhos utilizando a perspectiva, e também desenhando-os através da orientação de alguém que conheça a técnica. Em outras palavras, como já vimos com o cubo, isso requer desenvolver a habilidade de associar a percepção ao verdadeiro conceito.
Assim, vê-se que a percepção sensorial deve ser acompanhada por uma percepção mental dos conceitos verdadeiros, que são a essência do que está sendo percebido e isso é feito pelo nosso pensamento.
Nossa hipótese mais importante é que o pensar não é um processo físico – se fosse, seria impossível alcançar com ele o mundo não-físico das idéias. Mas, qual é, então, o papel do cérebro físico?

3.5 O papel do cérebro

O fato de pessoas que têm algum dano cerebral perderem certas capacidades mentais tem levado à conclusão de que o cérebro produz essas capacidades. A conhecida história de um jovem trabalhador que construía uma estrada de ferro no século 19 e teve sua cabeça atingida por uma barra de ferro, perdendo parte do cérebro, é talvez o caso mais famoso e estudado, descrito extensivamente em [Damasio 1994, p. 3]. Esse jovem alterou completamente seu comportamento social. Claramente, há alguma conexão entre as funções mentais e o cérebro.

Steiner usa uma interessante analogia para explicar essa conexão [1997, p. 139]. Suponha que uma pessoa está olhando seu rosto em um espelho. Por meio do espelho ela percebe da forma do mesmo. Sem uma imagem em um espelho, ninguém pode perceber como é sua própria face. Agora, quebre-se o espelho. Sua face ainda existe, mas agora não pode mais percebê-la. Similarmente , o cérebro funciona como um espelho para o pensamento. Devido a isto, percebemos nossos próprios pensamentos e podemos assim controlá-los e dirigi-los. Sem o cérebro, nós ainda pensamos, mas não estamos conscientes do que estamos pensando, e não podemos escolher o que pensar. A sabedoria da nossa linguagem natural revela um conhecimento antigo, intuitivo deste fato: "refletir" é sinônimo de "pensar".

De acordo com esse ponto de vista, a atividade cerebral é uma conseqüência e não uma causa. Se os cientistas fizessem essa hipótese, a pesquisa sobre a atividade cerebral seria enormemente expandida. De acordo com a minha hipótese, procurar pela origem do processo de pensamento no cérebro é como a da conhecida história de um bêbado procurando pelas suas chaves em uma área iluminada embaixo de um poste de luz e não aonde ele de fato as perdeu. Os cientistas estão usando os limitados postes de luz do materialismo e se recusam a olhar para outras áreas, construindo novos postes de luz e outros meios de investigação.

Agora a questão é: como pode uma atividade não-física como o pensar interagir com o mundo físico? Esta é a velha questão da mente vs. matéria.

Tenho duas explicações possíveis para esee efeito. Uma delas é que no cérebro deve haver vários elementos, talvez dentro dos neurônios, que estão em um equilíbrio instável. Em tal estado, uma quantidade infinitesimal de energia seria suficiente para produzir uma mudança de estado. Penrose formulou a hipótese de que os efeitos do quantum no nível atômico, em microtúbulos, podem ser responsáveis por este efeito [Kurzweil 1999, p. 117].

O físico Amit Goswami tenta explicar esta ação dos não-físico sobre o físico utilizando a não-localidade do a física quântica [ver, por exemplo, Goswani 1995]. Infelizmente, ele parece misturar os âmbitos físico e não-físico, utilizando para o último a mesma argumentação que ele usa para o primeiro. Mas talvez essa explicação fosse outra possibilidade para o nosso problema. Há um outro campo onde a ação do não-físico sobre o físico talvez seja melhor entendida: o crescimento e a regeneração de tecidos vivos. Em uma determinada célula viva, há três possibilidades: ou ela permanece como está, servindo para a diferenciação do tecido; ou se subdivide (mitose ou meiose) ou morre (apoptose). Conjeturo que a decisão sobre qual destes caminhos tomar não gasta energia. O modelo não-físico seguido pelo tecido regula este processo. A existência de um modelo por trás de todos os serem vivos parece ser claro; observe-se, por exemplo, como um pinheiro regula o crescimento de seus galhos para preservar sua forma de cone. Outro exemplo é a simetria das nossas mãos, orelhas, etc., permanentemente preservada durante o crescimento e regeneração. Um caso extremo é a forma razoavelmente permanente da impressão digital, mesmo quando a pele é danificada ("Feridas tais como queimaduras superficiais, raspões, cortes e bolhas, que somente afetam a epiderme, não alteram a estrutura rígida e o modelo original é duplicado na nova pele." [E.Britannica 1966, Vol. 9, p. 277]) Para preservar a simetria, seria necessário a uma orelha enviar uma mensagem a outra dizendo o quanto cresceu em uma determinada direção e esperar que a outra faça quase o mesmo crescimento – o que não faz sentido. Uma explicação mais razoável é que o processo de crescimento de todos as partes dos seres humanos, das quais podemos reconhecer as formas, assim como o dos elementos simétricos do corpo, são regulados de fora, por seu modelo, quer dizer, por um conceito não-físico. Obviamente, este modelo não-físico interage com os componentes físicos, que também estão sujeitos às diferenças ambientais. Richad Lewontin chamou este terceiro fator de "desenvolvimento aleatório" (development noise) [2000, p. 36]; para mim o processo não é aleatório, mas controlado pelo modelo ativo, que é o mundo platônico das idéias.

3.6 A visão

O processo de visão dá mais indicações de que há processos não-físicos acontecendo durante a percepção e a cognição.
O olho divide o campo da visão em quatro partes na fóvea da retina, correspondendo aos quatro quadrantes; vamos chamá-los de a, b (lado direito da imagem), c e d (lado esquerdo). As partes a e b formadas por cada olho são combinadas no nervo óptico (o qual, segundo me recordo de ter lido, transmite sinais elétricos complexos, que não correspondem às imagens na forma elétrica), assim como c e d, cada par indo para um hemisfério cerebral, onde a e b (c e d) estão separados em regiões divididas pelo sulcus calcarinus. Além, disso, no córtex visual há uma separação de percepção visual, movimentos no espaço visual, e lembrança ótica que ativa diferentes áreas no hemisfério direito, bem como percepção de forma e de cor no hemisfério esquerdo [Rohen 2000, pp. 17, 19]. Como então uma pessoa vê apenas um campo de imagem, como uma imagem completa? Minha explicação é que a percepção por si só não é um processo físico. Em algum lugar ao longo do nervo óptico e no cérebro, processos não-físicos acontecem de modo que a sensação completa que uma pessoa tem de um objeto percebido é produzido por alguns componentes não-físicos.

3.7 Compreensão e o aprendizado

Supondo que o pensamento é um órgão não-físico para observar o mundo das idéias, é possível compreender o que significa compreensão. Tomemos o caso da percepção de um certo objeto através de nossos sentidos. Nós compreendemos esse objeto se somos capazes de usar nosso pensamento e fazer a ponte entre a percepção e sua essência, seu "Ding an sich". Esse é o caso quando, por exemplo, olhamos um objeto à distância e não podemos distinguir o que ele é. Estamos conscientes de que nossa percepção não é boa o bastante para um entendimento completo. Chegamos mais perto e reconhecemos o que é o objeto, isto é, agora nossa percepção é clara o bastante para permitir façamos, por meio do pensamento, a associação entre a nossa percepção interior do objeto e sua essência.

Isto se aplica também para a percepção de fenômenos. Por exemplo, olhamos para uma árvore e, de repente, notamos que um de seus galhos está movendo-se, mas todos os outros galhos estão parados. Ficamos inquietos, porque reconhecemos que não há vento e, mesmo se houvesse, vários galhos iriam mover-se. De repente, vemos um pássaro voando da árvore; agora intuímos que o pássaro devia estar pousado no galho e, quando voou, fez com que o galho movesse. Esse exemplo também ilustra o fato de que a compreensão pode envolver a associação de várias percepções e pensamentos.
John Searle não foi capaz de caracterizar o significado da compreensão (cf. 2.2.). Conjeturo que, de um ponto de vista materialista, nunca será possível fazer esta caracterização.

É possível fazer, com o pensamento, associações incorretas entre percepções e conceitos que não correspondem à essência de um objeto, ou fazer associações mentais incorretas. Isto pode vir de percepções sensoriais imperfeitas, ou pensamento incorreto. O primeiro é geralmente claro: por exemplo, se vemos uma pessoa à distância e não podemos reconhecer se é um homem ou uma mulher, ficamos cientes de que nossos olhos não estão acurados o bastante para ver claramente à distância. Para uma pessoa com órgãos sensoriais saudáveis, eles são extremamente fiéis, e ela reconhece quando sua percepção não está clara. Do contrário, não poderíamos confiar em nossos sentidos, e seríamos esquizóides ou malucos.

O pensamento incorreto vem de não se examinar todas as possíveis associações e não escolher aquela com a evidência mais razoável. Esse foi o caso com o modelo planetário heliocêntrico. Todos vêem o sol e as estrelas movendo-se no céu. O julgamento de considerar a terra imóvel e o sol e as estrelas girando em volta dela, ou o sol e as estrelas imóveis e a terra girando em volta de seu eixo, é uma questão de julgamento, de pensamento correto, não de percepção. Esse exemplo ilustra um ponto muito importante: o pensamento correto depende de seu desenvolvimento. Por milênios os seres humanos não tiveram capacidade suficiente de abstração para se livrarem da forte impressão sensorial do sol e das estrelas movendo-se pelo céu. É importante observar que o modelo heliocêntrico já era aceito amplamente quando Newton estabeleceu, em 1687, uma teoria robusta, a da gravitação, para explicar o movimento dos planetas e suas órbitas elípticas em volta do sol. Mas isso aconteceu bem antes da primeira demonstração experimental desse fato com o pêndulo de Foucault em 1851. Até então, a aceitação do modelo heliocêntrico era uma questão de aceitar a teoria abstrata mais convincente. Uma fascinante consideração desse desenvolvimento da capacidade humana de pensar foi dada por Arthur Koestler [1964]. Ela mostra como a humanidade adquiriu a habilidade de chegar a conceitos corretos sobre o sistema planetário.

O aprendizado também pode ser entendido com esse modelo. Ele significa desenvolver a capacidade de perceber certos conceitos por meio do pensamento, fazendo as associações corretas entre os vários pensamentos que estão inerentemente conectados no mundo das idéias, ou fazer a ponte correta entre a percepção de um objeto ou fenômeno e seu conceito. Memorizar percepções e conceitos é obviamente também uma parte essencial do processo de aprendizado.
A propósito, uma pessoa nunca deveria dizer que um programa de computador "aprende". O que ele faz é calcular alguns parâmetros (como no caso das erroneamente chamadas "redes neurais"; a única similaridade entre elas e nossos neurônios é que estes também formam redes), ou armazenar alguns dados. Não há conhecimento científico de como nosso cérebro aprende algo; conjeturo que esse também é um processo não-físico. Isso não contradiz fatos científicos já conhecidos (mas certamente contradiz o julgamento da maioria dos cientistas que trabalham com cognição).

3.8 O cérebro é um computador?

Como eu já disse, não há base científica para afirmar que o cérebro funciona como um computador digital. Ao contrário, há muitas indicações de que ele não faz.

Aparelhos digitais apenas funcionam se os sinais que atravessam os vários circuitos estão sincronizados. Uma porta lógica não funciona se não houver sincronização dos pulsos elétricosque chegam a ela. Essa sincronia é obtida por um gerador central de pulso, o chamado "relógio" (clock); quando, por exemplo, é dito que um computador tem um relógio de 2 ghz, isto significa que seu gerador central de pulso gera dois bilhões de pulsos por segundo. Claramente, não há nenhum gerador central de pulso e sincronização de pulsos no cérebro. Recentemente, novos projetos de circuitos lógicos assíncronos, isto é, sem um relógio central, têm sido desenvolvidos (nomomento, apenas pequenas partes de instrumentos utilizando circuitos digitais estão no mercado utilizando essa técnica):
"Sem um relógio para governar suas ações, um sistema assíncrono deve, em seu lugar, basear-se na coordenação dos circuitos locais. Esses circuitos trocam sinais de finalização para assegurar que as ações em cada estágio começam apenas quando os circuitos têm os dados de que precisam." [Sutherland 2002, p. 50]

Portanto, mesmo sem um gerador de pulso sincronizador, é necessário ter uma sincronia local para trocar sinais sincronizados, mas os neurônios não parecem seguir este padrão. Aparentemente, os neurônios podem dispara (isto é, produzir um sinal elétrico de saída nos seus axônios) ou não disparar nas mesmas circunstâncias ("O mesmo estímulo não produz sempre o mesmo resultado" [Penrose 1991, p. 396]). Então, como na maioria, senão na totalidade dos processos dos seres vivos, não há no cérebro um determinismo tal como nas máquinas digitais.

O determinismo é uma das características essenciais da potência dos computadores e os torna úteis. Seria um desastre, para um determinado programa e um determinado conjunto de dados de entrada, se o dado resultante fosse diferente cada vez que os primeiros forem processados. Se há processos não-deterministas, tais como aqueles que ocorrem em redes de computadores (por exemplo, o trajeto que uma mensagem vai percorrer em uma rede complexa de computadores é em geral imprevisível), para cada máquina da rede tudo se passa como se houvesse determinismo.

O conexionismo (connectionism - ver, por exemplo, [Ramsey 1991]) introduziu a idéia de que o cérebro é um sistema altamente distribuído e é baseado nesse conceito que sua atividade é estabelecida entre os neurônios. Deixando de lado o fato de que as chamadas redes neurais não têm quase nada em comum com as redes formadas pelos neurônios (por exemplo, estas últimas não têm uma topologia fixa [Penrose 1991, p. 396], os parâmetros para combinar as entradas de dados de cada célula da rede neural são calculados através de algoritmos muito complexos, as entradas de dados têm de ser sincronizadas, etc.), há um forte argumento contra o modelo distribuído: nós não temos a impressão de que as nossas atividades mentais são separadas em várias partes [p. 398]. Ao contrário, como vimos no caso da visão, parece existir uma distribuição de funções pelo cérebro mas nossa percepção é de um todo. Atividades inconscientes ou semiconscientes podem ser feitas paralelamente. Assim, nós podemos fazer coisas diferentes com nossos membros, por exemplo nós podemos usar nossas mãos enquanto andamos. Mas o pensamento consciente está sempre concentrado em apenas um pensamento.
Assim, qualquer comparação entre o funcionamento do cérebro e uma máquina digital é absolutamente imprópria. Também considero isso perigoso, porque reduz a imagem que o ser humano faz de si mesmo à de uma máquina. O perigo vem do fato de não haver ética envolvendo nossa relação com as próprias máquinas, apenas como nós as usamos em relação a outras pessoas e ao mundo. Na há sentido em se ter compaixão para com uma máquina, por exemplo sentir pena de desligá-la. Infelizmente, as crianças têm sido condicionadas a terem tal sentimento; esse foi, por exemplo, o caso do terrível Tamagochi.

3.9 Critica a Kurzweil

Ray Kurzweil é um dos expoentes da idéia de que seres humanos são máquinas, portanto as máquinas serão algum dia capazes de fazer qualquer coisa que um ser humano faz. Seu livro best-seller [1999] é cheio de profecias, baseadas na afirmação a seguir:

"O cérebro humano tem cerca de 100 bilhões de neurônios. Com uma média estimada de mil conexões entre cada neurônio e seus vizinhos, temos cerca de 100 trilhões de conexões, cada uma capaz de efetuar um cálculo simultâneo. É, sem dúvida um processamento paralelo maciço e uma chave para a potência do pensamento humano. Uma profunda fraqueza, contudo, é a excruciante baixa velocidade dos circuitos neurais, apenas 200 cálculos por segundo." [p. 103.]

Essa afirmação é absolutamente injustificada. Ele não diz que tipo de cálculos são feitos por cada conexão de neurônio e, como já mostramos, ele não pode nem dizer como os dados são armazenados no cérebro. Baseado no número acima, ele o multiplica pelas 100x1012 conexões existentes no cérebro, chegando à conclusão de que somos capazes de realizar 20x1015 "cálculos" por segundo. Ele nem sequer considera a possibilidade de que possa haver diferentes funções para diferentes conexões; para ele esta capacidade de realizar cálculos é o fator mais importante. Ele usa o mesmo tipo de argumentação para chegar à conclusão de que a nossa memória tem 1015 bits.

No seu livro clássico, John von Neumann escreve: "um receptor padrão parece aceitar 14 impressões digitais distintas por segundo". Ele supõe que há "1010 células nervosas" cada uma trabalhando como "um receptor (interno ou externo)". Então, "assumindo além do mais que não há um verdadeiro esquecimento no sistema nervoso", e um tempo de vida normal de 60 anos ou cerca de 2x109 segundos, ele chega à conclusão que a capacidade da nossa memória é 2,8x1020 bits [1958, p. 63].

É impressionante como pessoas tão brilhantes podem fazer esse tipo de cálculo, sem saber como nossa memória funciona, levando em conta que o nosso sistema nervoso não é uma máquina digital, etc. Contudo, vamos prosseguir com Kurzweil.
Extrapolando a crescente capacidade dos novos computadores ele chega à conclusão que em 2020 um computador de US$ 1.000,00 terá a mesma capacidade de cálculo do cérebro humano, em 2023 a mesma capacidade de memória. Ele profetiza que em 2019 haverá "relatos de computadores passando o Teste Turing", e em 2029 terão de fato passado esse. Para criticar estas afirmações, vamos abordar a questão da inteligência e o Teste Turing.

4. Inteligência

Até agora temos falado sobre percepção e pensamento. Para responder à velha questão "as máquinas podem ser inteligentes?" temos que lidar com a questão do que é inteligência e o que significa considerar que uma máquina é inteligente.

4.1 O que é inteligência?

A resposta para essa velha questão depende do que se entende por "inteligência". Por exemplo, se alguém pensa que jogar uma boa partida de xadrez é demonstração de inteligência, então temos que atribuir inteligência aos computadores. Mas como nem toda pessoa inteligente joga xadrez, essa caracterização não é suficientemente ampla.

É importante perceber que não é possível formalmente definir o que é inteligência. A quarta edição do American Heritage Dictionary, tem as seguintes explicações para "inteligência":
a. A capacidade de adquirir e aplicar conhecimento.
b. A faculdade do pensar e da raciocinar.
c. Poderes superiores da mente.

Percebe-se que essas caracterizações são um tanto vagas, a terceira é de quase nenhuma utilidade. O mesmo dicionário diz que o conhecimento, entre outras coisas, é "informação específica sobre algo" (ver meu artigo "Dado, informação, conhecimento e competência", no meu site, para a caracterização desses conceitos). Como já vimos na seção 2.1, vou fazer uma clara distinção entre dados e informações. Na minha conceituação, informação requer significado, compreensão. Computadores não processam informação, mas apenas dados. Nesse sentido, computadores não podem ser inteligentes. Mas vamos estender esta caracterização de inteligência, cobrindo suas várias manifestações.

4.2 Tipos de inteligência

Howard Gardner foi o pioneiro em antecipar o que ele chamou de "visão pluralista da mente" [1995, p. 13] e classificar vários tipos de inteligência. Ele inicialmente reconhece sete tipos [pp. 15, 22]:
a) Lingüística
b) Lógico-matemática
c) Espacial
d) Musical
e) Corporal-cinestésica
f) Interpessoal
g) Intrapessoal

Ele diz que normalmente a educação e as provas realizadas nas escolas enfatizam apenas as duas primeiras [p. 107], mas todas elas são importantes para uma vida saudável e frutífera. (c) tem a ver com "a capacidade de formar um modelo mental de um mundo espacial, e de ser capaz de manobrar e operar utilizando esse modelo", e é típica dos marinheiros.