PEDAGOGIA WALDORF

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EDUCAÇÃO E DISCIPLINA: BINÔMIO CONTRADITÓRIO?
Anderson Paulino de Souza
Tel: (21) 9611-9511, 2692-5024 - anderson_paulino@uol.com.br

Com esse título, a revista NÓS DA ESCOLA (Ano 1, Nº 8, 2002), distribuída pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro por meio da MULTIRIO, trouxe uma intrigante entrevista com um renomado educador brasileiro que, por hora, terá seu nome omitido, para garantirmos certa imparcialidade do leitor frente aos objetivos que tentaremos atingir com este artigo.

A discussão gira em torno da questão da indisciplina escolar que, segundo a revista, é apontada por grande parte dos professores como uma das causas do baixo rendimento dos alunos. Sabemos que esse tema ocupa lugar de destaque na lista de reclamações feitas pelas escolas às famílias de seus alunos e vice-versa. Ao depararmo-nos com as respostas oferecidas por aquele renomado educador brasileiro, resolvemos formular nossas próprias respostas, utilizando-nos da vivência prática do dia-a-dia das escolas públicas nas quais lecionamos e em nossos estudos ampliados da antropologia humana.

Os nomes serão ocultados até o final da entrevista sendo, portanto, utilizados os termos EDUCADOR 1 e EDUCADOR 2 para designar as respostas emitidas pelos dois educadores. Um deles é o entrevistado pela revista "Nós da Escola", e o outro contém as respostas que daríamos às mesmas perguntas. Esperamos com isso contribuir para a ampliação das discussões acerca dessa temática por vezes turva, difusa, mas amplamente nobre e necessária. As mentes dos que querem pensar, pensarão!

Nós da Escola: Qual o conceito de disciplina na escola?

EDUCADOR 1: Disciplina e educação. Como unir dois processos tão desencontrados? Que significado pode ter para um docente quando se pensa como educador e para uma escola quando se pensa como educandário? Falar em disciplina? Educar para a disciplina? Educar seria disciplinar? Confesso que tenho dificuldade em encontrar qualquer relação entre educar e disciplinar seres humanos. Como educador, sou contra qualquer uso da educação para disciplinar crianças, adolescentes ou jovens. Penso antes em Paulo Freire, na educação como aprendizado da liberdade.

EDUCADOR 2: A disciplina na escola deveria ser vista como uma ação cuja finalidade é a de conduzir o homem a possuir autonomia. Não significa que essa liberdade já lhe seja outorgada durante esse período de preparo, ao contrário, acreditamos que o jovem e o adolescente têm de caminhar através de estágios de independência (diferentes entre si, conforme a idade), para amadurecerem e adquirirem a capacidade de autonomia (tomar a vida nas próprias mãos!); isso implica na capacidade de resistir à manipulação mental.

Nós da Escola: Onde está o problema da disciplina? No aluno? No professor? Na escola? Na família ou na sociedade?

EDUCADOR 1: Quando a escola, a família ou a sociedade passam a entender a disciplina ou indisciplina como problema da infância ou da adolescência é um grave indicador do nosso fracasso como educadores(as). Quando uma família, um educandário, uma sociedade são violentas com suas crianças, adolescentes ou jovens, como esperar que eles (as crianças) não aprendam essas lições? A sociedade é violenta, indisciplinada, dominada pela procura de lucro. A concorrência somente submete o povo ao desemprego, ao subemprego. Os horizontes humanos se fecham para nossos adolescentes e jovens. Há violência maior? A infância é jogada nas ruas para sobreviver a qualquer custo. As famílias e escolas padecem essa violenta indisciplina social. Por vezes a reproduzem. Inclusive na rigidez das escolas. Como esperar que essas crianças, adolescentes e jovens sejam ordeiros e bem-comportados? Os adultos recolhem o que semeiam. Culpar de violentos(as), os alunos(as), os filhos ou filhas é uma irresponsabilidade.

EDUCADOR 2: O problema está na forma como se vê o ser humano. Enquanto tomarmos por base a visão de que o ser humano não passa de um animal civilizado, incorreremos em erros óbvios. É justamente na medida em que supera, refina e sublima seus instintos, impondo sua espiritualidade àquilo que nele é apenas animalesco, que o homem se distingue do animal. O homem precisa de educação e esta poderá vir também por meio de atitudes disciplinares, não necessariamente repressivas, mas sim como impulso para sublimação ou correção de forças inatas ou pelo menos presentes na criança em dada situação.

Quando feita de acordo com o desenvolvimento do ser humano, na forma certa e na época certa de sua vida, a educação e a disciplina (obediência à autoridade) respondem e correspondem aos anseios superiores do eu humano.

Nós da Escola: Os professores falam em alunos indisciplinados, os alunos falam em professores bravos. Podemos sair desse olhar mútuo, deixar as acusações mútuas e pensar nas responsabilidades do convívio escolar?

EDUCADOR 1: Primeiro devemos começar por superar essa visão saudosista de que nós fomos filhos e alunos mais disciplinados. A indisciplina, a inquietação, o questionamento sempre foram qualidades da infância, da adolescência e da juventude de todos os tempos. Coitada da escola, ou da sociedade em que a infância ou a juventude perderem o questionamento e a inquietação. Só nos cemitérios e nos campos de concentração, ou nas ditaduras (lembram do filme "A vida é bela"?) encontraremos essa disciplina. Somente em escolas ou salas de aula que viraram cemitérios encontraremos essa disciplina. Encontraremos corpos infantis e juvenis cheios de vida disciplinados, silenciosos, quietos, parafusados em suas carteiras, rígidos, olhando para a nuca do colega da carteira da frente. Esse sonho nada tem de pedagógico. Todos sabemos de milhares de educadores e educadoras e de escolas que têm orgulho de educar crianças, adolescentes e jovens vivos, questionadores e estimulam essa vida, problematizam seus questionamentos. Educadores(as) que reinventam, como Paulo Freire, a pedagogia problematizadora, libertadora. É possível um convívio escolar humano. Conheço inúmeras escolas onde reina um clima alegre, humano, construído com empenho por educadores e educandos.

EDUCADOR 2: Parece-nos urgente trazer à consciência dos professores que liberdade e autoridade não formam necessariamente um antagonismo e sim que deveriam estar equilibradas, porém, equilibradas entre vários tipos de liberdade e autoridade, de acordo com a idade da criança. Se não me tomarem ao "pé da letra", isto é, como sendo uma "receita de bolo", para fins mais didáticos e práticos, poderia sugerir o que recomenda Rudolf Steiner, o fundador da Pedagogia Waldorf (1):
- 0 aos 7 anos: autoridade através do exemplo; direção absoluta.
- 7 aos 14 anos: autoridade natural baseada no amor, mão firme, mas, carinhosa; liberdade, ainda que orientada, nos sentimentos e na criatividade.
- 14 aos 21 anos: autoridade natural baseada nas qualidades pessoais (intelectuais, morais, etc.) do educador; liberdade e responsabilidade cada vez maiores.
- 21 em diante: plena liberdade e responsabilidade
"Em seu íntimo a criança quer ser compreendida, julgada, estimulada, eventualmente criticada. Quando pequena, quer sentir a segurança de ser guiada. Mas os adultos não querem, não sabem ou não podem fazê-lo... e dessa frustração nasce, em grande parte, o abismo entre as gerações." (2)

Nós da Escola: Quais são os alunos vistos como indisciplinados?

EDUCADOR 1: Os pobres, os filhos e as filhas dos setores populares. Os mesmos que a mídia e as elites vêem como violentos e indisciplinados. Na escola, com freqüência, nos deixamos contaminar pelo olhar negativo que nossa sociedade excludente tem do povo, dos trabalhadores, dos negros, dos milhões de cidadãos que essa mesma sociedade condena à miséria e à sobrevivência mais elementar e ainda espera que fiquem bem-comportados. A nossa cultura escolar e docente se deixa contaminar facilmente pela cultura elitista que vê o povo como incivilizado, sem cultura, sem valores, sem disciplina. Nomeamos nossos(as) alunos(as) com termos pejorativos: repetentes, evadidos, lentos, desatentos, violentos, indisciplinados, carentes, sem caráter, sem hábitos morais... Se houver ainda educandários e docentes que vêem os(as) filhos(as) do povo com esse olhar tão negativo deveriam reconhecer que não têm preparo para serem nem educandários nem educadores. O mais grave é que muitos docentes das escolas populares são também filhos(as) do povo. Seria bom lembrar dos valores e da dignidade das famílias e comunidades. Onde nasceram, se criaram e se educaram. Talvez a indigna condição de docentes nos desumanizou? Renunciamos a nossa origem?

EDUCADOR 2: "A autodeterminação (ou, filosoficamente falando, o livre-arbítrio) é o fruto de um longo aprendizado. Trata-se de um longo processo de metamorfose. O cultivo dos sentimentos transforma-se em firmeza de caráter; a obediência transforma-se em amor ao dever; o aprendizado das formas (disciplina*) transforma-se em segurança; o cumprimento de deveres transforma-se em integração social; e a veneração transforma-se em desejo de ser autônomo." (1) Logo, serão vistos como indisciplinados todos aqueles que foram conduzidos pelo caminho oposto, "visto que a permissividade traz o tédio; a carência de ideais, o cinismo; a falta de disciplina, a insegurança. Essas faltas criam um terrível vazio interior, e é neste que penetram, com maior facilidade, certas influências extremamente negativas, tendentes a desviar o homem de seu caminho." (2)

* Disciplina: um conjunto de prescrições ou normas destinadas a manter a boa ordem em qualquer organização. (Superdicionário da Língua Portuguesa. 52ª ed. Editora Globo)

Nós da Escola: Como os(as) educadores(as) podem repensar seus valores e sua cultura profissional para trabalhar com alunos(as) das classes tidas como violentas?

EDUCADOR 1: Reaquecendo os valores e a cultura popular de origem em que muitos(as) nasceram e passaram sua infância, adolescência e juventude. Trazendo a sua memória os valores e a dignidade de suas famílias, de suas comunidades trabalhadoras e negras. Reagindo violentamente aos valores e à cultura das elites violentas que mantêm o povo na miséria, no desemprego e no desespero e quando esse mesmo povo luta e reage por dignidade é pichado de violento. Pensemos como categoria docente que também é mantida no limite de salários de sobrevivência por essas mesmas elites no poder, o que temos em comum com os valores e a cultura das elites que nos violentam? Faz mais de 20 anos que a categoria docente, da escola pública popular sobretudo, é tida como violenta, indisciplinada, por quê? Porque luta por sua dignidade. Talvez esta nossa história docente nos ajude a entender que essa é mesmo a cultura política, social e pedagógica que condena a impaciência do povo como violência. Será essa a mesma cultura que nos contamina a ponto de condenarmos nossos(as) alunos(as) como violentos, indisciplinados? Por que não termos um olhar pedagógico e ver em sua indisciplina a procura da mesma dignidade, dos mesmos direitos pelos quais nós docentes lutamos? Se nossa indisciplina é um valor de que nos orgulhamos, reconheçamos os valores da indisciplina dos educandos.

EDUCADOR 2: Reflitamos essa maravilhosa frase de Rudolf Lanz: "Se a educação for excessivamente rígida, teremos a revolta, a mentira, a hipocrisia e outras formas de autodefesa. Se for excessivamente frouxa, teremos o tédio, a falta de motivação e a atrofia das melhores forças."(1) Lembro-me também das belas palavras de Rudolf Steiner, "Educamos comportando-nos de tal forma que a criança possa educar-se a si própria através do nosso comportamento." (3)

Diante disso e, parafraseando a "fórmula steineriana", sugerimos: "Em primeiro lugar, que o professor atue sobre seus alunos, no todo e também nos detalhes, tanto pela espiritualização do seu ofício quanto pela maneira como pronuncia cada palavra e faz viver cada sentimento. Que o professor seja uma pessoa de iniciativa, estando presente em tudo o que faz na escola e em seu comportamento junto às crianças. Em segundo lugar, como professores devemos ter interesse por tudo o que existe no mundo e se refere ao homem. O professor deve ser uma pessoa aberta e interessada pelos assuntos mais relevantes e pelos mais irrelevantes referentes a cada criança. Deve ser interessado em toda a existência humana, presente e histórica. Em terceiro, o professor deve ser uma pessoa que, em seu íntimo, jamais venha a compactuar com a inverdade. Nosso ensino somente será uma expressão de verdade se almejarmos a verdade em nós mesmos. Por último, algo que é mais fácil de dizer do que pôr em prática, sendo, no entanto uma regra de ouro para a profissão de educador: o professor não deve ressecar nem azedar jamais. Não ressecar, nem azedar! Eis o que o professor deve pretender."(4) Se pudéssemos resumir tudo o que foi dito em apenas uma frase eu diria: exercitar cotidianamente o verdadeiro amor altruísta.

OS PERSONAGENS

EDUCADOR 1: Professor Miguel González Arroyo, Ph.D. em Educação pela School of Education da Universidade de Stanford e ex-professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
EDUCADOR 2: Professor Anderson Paulino de Souza, das redes municipais de ensino do Rio de Janeiro e de Belford Roxo e, parafraseando Belchior, "...apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Mas que traz de cabeça uma canção... Tudo é divino, tudo é maravilhoso!"

CONSIDERAÇÕES FINAIS


É necessário frisar que está absolutamente fora do nosso propósito questionar, criticar ou invalidar as respostas fornecidas pelo respeitável mestre Prof. Miguel Arroyo. Igualmente, cabe-nos esclarecer que, tampouco se trata de aceitar passivamente as palavras do nosso querido professor. Acredito que na posição de profissionais da aprendizagem que somos, cumpre-nos não perder nunca de vista a importante tarefa de (re)construir conhecimento para continuar avançando rumo ao sonho de uma educação pública de qualidade.

Devo confessar, no entanto, que mediante as péssimas interpretações (e aplicações!) que temos visto nas escolas públicas, das 'novas' teorias pedagógicas, das novas políticas educacionais (ciclos, progressão, formação continuada, 'ppp', etc.), enfim, dos constantes desencontros (e por que não dizer, do abismo) que separam os estudos acadêmicos que versam sobre políticas públicas na educação e a realidade do cotidiano escolar, temi que mais uma vez outra questão tão relevante como a da disciplina corresse o risco de ser mal interpretada e/ou implementada pelos nossos educadores no interior das nossas escolas, colaborando assim para a baderna, o tédio e o aumento do tremendo mal-estar e da tremenda obsolescência do ensino, desgraçadamente já instalado no interior de muitas escolas públicas do nosso país. Desta forma, o objetivo das nossas considerações foi o de ampliar a discussão sobre o assunto, a partir do olhar ampliado pela visão do ser humano da Antroposofia que, por meio da sua Pedagogia Waldorf tem nos oferecido ferramentas práticas, objetivas e humanas que nos têm permitido enfrentar com êxito o duro (e por vezes, triste!) cotidiano das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, as quais tanto necessitam despertar, 'pôr os pés no chão', 'abrir os olhos' e caminhar rumo a uma verdadeira educação de qualidade, esse sim, nosso maior desafio, nosso maior desiderato.

Referências

1. Lanz, Rudolf. A Pedagogia Waldorf. Caminho para um ensino mais humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 1998 (p. 144).
2. Lanz, R., Op. Cit. (p. 145).
3. Steiner, Rudolf. Causas Espirituais dos conflitos entre as gerações - curso pedagógico para jovens. 13 palestras proferidas em Stuttgart de 3 a 15/10/1922, GA (catálogo geral) 217, trad. R. Lanz. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985 (p. 106).
4. Steiner, Rudolf. A Arte da Educação (Vol.II): Metodologia e Didática. 14 palestras proferidas em Stuttgart de 21/8 a 5/9/1919, na fundação da 1a. escola Waldorf, GA 294, trad. R. Lanz. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1992 (pp. 149-150).