Texto
de agradecimento à Câmara Legislativa do Distrito Federal
em razão da outorga conferida do título de Cidadão
Honorário de Brasília a mim, Milton Freire de Carvalho,
Mestre Onça Tigre, discípulo de Manuel dos Reis Machado,
o Mestre Bimba, em Brasília-DF, 19-XI-1999.
Exmo. Sr. Presidente da Câmara Legislativa Distrital Deputado Distrital
Edimar Pirineus , Ex.mo. Sr. Deputado Distrital Wasny de Roure que nos honrou
com esta outorga, excelentíssimos senhoras e senhores parlamentares que
atuam nesta Egrégia Câmara, queridos irmãos capoeiras, cidadãs
e cidadãos de Brasília, capital do Brasil.
"Muito
vence quem se vence, Muito diz quem não diz tudo Só ao discreto
pertence Em tempo tornar-se mudo". - Aforismo popular de nossa terra.
-
Entre a população de Brasília, poucos tiveram a ventura de
serem agraciados com a insígnia que ora nos concedem os lídimos
representantes do povo brasiliense. Ah! Quem dera poder permanecer em silêncio,
para melhor usufruir a forma e o conteúdo desta magna solenidade. Nasci
em Mossoró, RN, aos 7 dias de fevereiro de 1919. meus pais, Joaquim Carvalho
Sobrinho e Maria Freire de Carvalho. Lá na terra do sal, concluí
os estudos, primário e médio. Trago nos cabelos brancos a poeira
das estradas imensuráveis que percorri até me defrontar hoje com
vossas excelências. Antes porém, fui conduzido pelas mãos
do destino de Pernambuco para o Ceará e de lá para a Bahia, onde
concluí os estudos de saúde médico-odontológicos.
Recebi um pergaminho de Cirurgião Dentista, bem como a espada do oficialato
do Exército brasileiro juntamente com uma carta patente. Através
do Grêmio criado no Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva
do Exército brasileiro, o CPOR, com a permissão do Senhor Comandante
fundei uma Academia de Capoeira Regional Baiana com a superveniência do
senhor Manoel dos Reis Machado - o saudoso Mestre Bimba, de quem, porque seu discípulo,
fui monitor, graças ao pequeno conhecimento e alguma facilidade no aprendizado
e ensinamento da Capoeira. A nossa Academia no Grêmio do CPOR ensinou e
preparou a muitos alunos que se tornaram prefeitos de cidades, deputados, senadores,
governadores, dentre as muitas atividades a que se dedicaram após o serviço
militar e a profícua experiência com a Capoeira. E não
pararam aí as minhas caminhadas. Vejamos: Terminada a Segunda Guerra Mundial,
transferi-me para o Estado de São Paulo. Lá fundamos com alguns
companheiros de vida política, a Cidade de Estrela D'Oeste, na Alta Araraquarense,
onde também desenvolvemos atividades nas áreas da cafeicultura,
farmácia e odontologia. Continuei minhas andanças. Cinco anos depois,
mudei-me para São José do Rio Preto, onde construí casas
populares, enquanto exercia a principal profissão, a de odontólogo.
Em 1952 participei do curso de mestrado com uma tese inédita, fazendo cursos
como cirurgia e ortodontia, onde, no terreno da prótese e reimplantação
dentária graduei-me em sobre-especialização. Ao mesmo tempo,
obtivemos sob o n.º 4386, o registro de jornalista da APISP - Associação
dos Profissionais de Imprensa de São Paulo. Atividade esta que até
hoje desenvolvo. Não é do fulcro do meu interesse desenrolar aqui
a minha longa e sofrida caminhada enquanto cidadão político nas
lides partidárias em defesa das causas operárias e da expressão
cidadã das populações menos favorecidas e aí, a população
operária e artística negra, como de fato o fiz em São Paulo
após o banimento da lídima representação do trabalhador,
em 1947. Nossa luta continuou como bem o mostramos ao correr do tempo, com o necessário
denodo. Em 1964, muito em função da inquietude instalada pelo
novo regime ditatorial e das constantes persigas a este humilde homem do povo,
domiciliei-me e passei a residir em Taguatinga, onde Implantei a primeira escola
de Capoeira do Distrito Federal, transferindo todos os nossos aprendizados adquiridos
na Academia do Mestre Bimba, e com ele, sobre a Luta Regional Baiana. Em Brasília
fui agraciado pelo Dr. Francisco Pinheiro da Rocha com uma bolsa de estudos quando
o mesmo detinha sob sua orientação o comando da Secretaria de Saúde
do Distrito Federal. Após dois anos de estudos ininterruptos regressei
a Taguatinga como portador do grau de mestre em saúde pública, fornecido
pela Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro. Concluí
o bacharelado em Direito. No ano seguinte à formatura, fui convidado pelo
Departamento de Ciências Jurídicas da Associação de
Ensino Unificado do Distrito Federal a participar do corpo docente da AEUDF, na
cadeira de Direito Constitucional. Também atuando como causídico
inscrito na OAB-DF sob o n.º 1891. No Estado de Goiás, no Vale
do Paranã, instalei uma fazenda de gado, ainda existente, seguindo o destino
e as raízes sertanejas sempre presentes no sangue herdado dos símplices.
Por questões de atendimento à família regressei a Mossoró-RN
e lá exerci o Magistério na UFRN nas áreas de Direito Constitucional,
Direito Internacional Privado, Direito Romano, História do Direito e Política.
Dediquei-me também à indústria salineira no município
de Grossos, onde implantei várias salinas. A responsável por
esta magnífica cerimônia, sem dúvida, é a história
da capoeira que vive imanente à minha personalidade. A capoeira, que veio
em potencial nas hemácias dos Guerreiros que foram seqüestrados nos
confins d'África, germinou nos bojos dos navios negreiros durante as longas
travessias atlânticas, temperadas com açoites e queixumes. O mar
emprestou-lhe a cadência do vai e vem, furioso ou dolente. O Africano chegou
nestes Brasis e foi logo despejado nos canaviais e lavouras de café, prontos
para enfrentar o correr dos martelos nas fazendas para onde foram leiloados e
vendidos como instrumentos quaisquer. Sobraram maus tratos e pancadarias, tudo
diferente das larguezas sem limites de seus pagos, onde deambulavam desembaraçadamente.
Uma vez seqüestrados, de antemão já eram condenados sem julgamento
e sem recursos À prisão perpétua e a trabalhos forçados,
tendo como limites as florestas atlânticas povoadas por feras, e do outro
lado a imensidão do mar. A fuga era impossível diante dos pantanais
habitados por animais ferozes de todo tipo e tamanho. Quem se achasse perdido
nos pântanos, perdido continuava, para sempre. Para cumprir as leis
naturais: conservação da vida e/ou perpetuação da
espécie, optavam sempre pelas fugas, isto quando lhes era facultado enfrentar
os capitães de mato fortemente armados e conhecedores dos ermos, dos desertos.
Enfrentar os bandos de capitães de mato, lembrava as cerimônias guerreiras
de antepassados nas danças da Zebra, N'golo e outros passos. Ensaiavam
duelos de morte, mesmo porque a capoeira aí se achava nos primórdios
de sua invenção como defesa. A despeito da capoeira que conhecemos
ter a idade do cativeiro - três séculos, - era ainda incipiente como
luta propriamente dita. A fuga para os quilombos - repúblicas dos homens
livres - como assim eram chamados, eram levadas mais a sério. Qualquer
negro apanhado nas brenhas dos quilombos já estava automaticamente condenado
à morte, sem mais perspectivas que não a da mais humilhante revenda,
qual alimária semovente a cobrir supostos prejuízos do "dono"
de suas vidas sempre em condições subumanas. Não obstante
os velhos mandingueiros, já aclimatados, desenvolviam os primeiros passos
do preceito, em busca da liberdade perdida. Motivações não
faltaram para os guerreiros tentarem as contendas. As variáveis existiam
para a Paz e para a guerra. O novo cativo, logo que sarado dos relhos crus,
durante a crucificação dos troncos, fazia-se à roda lúdica,
superando o sangue derramado, mostrando nos escancaramentos dos risos galhofeiros
e se tornando aprendiz dos mestres "camaradas", fundando o primeiro
partido político sócio-econômico do Brasil: A Capoeira Libertária.
Do folguedo manso e inocente cheio de trejeitos e arreganhos de beiçolas
expondo dentes hígidos de torar coco velado, passou à malícia,
com seus martelos galopantes e godemes nas fuças de capitães-de-mato
e soldados de farda vermelha, nas emboscadas preparadas nos caminhos dos pagodes
e outros festejos da época. Tempos duros que ainda não haveriam
de passar. Políticos contrataram capoeiras para ganharem eleições.
O rabo-de-arraia comeu morgado em cima dos concorrentes que só tinham boca
para berrar "- aquinderrei!"... Aqui, d'El Rey! Socorro, pedido
e quase nunca atendido... Tempos de medo! O capoeira virou cabuletê
a soldo dos brancos e foi parar no mundo da ilegalidade com prisões e desterros.
Somaram-se preconceitos e discriminações e o capoeira mergulhou
no submundo do olê-olê-patá-patá, sem préstimo
nenhum, a não ser para servir às malvadezas de seus donos brancos.
As fugas dos escravos repercutiram em queda de produção de todas
as fontes de trabalho como garimpos de ouro e de pedras preciosas e até
das lavouras de subsistência, provocando crise econômica, principalmente
no setor primário. A conseqüência disto foi a inadimplência
de Portugal para com a Inglaterra, com desdobramentos para o comércio internacional.
Lembremos da coincidência de tais atitudes por todo o meio escravo das Américas...
Era a seqüência das guerras santas islâmicas, os Jihads, em África...
A Inglaterra exigiu os pagamentos dos débitos, forçando os governantes
de Portugal a instituírem as derramas na colônia brasileira. Os dirigentes
do país lançaram mãos do recrutamento no exército
para capturar os negros dos quilombos. Os resultados foram péssimos para
todos. Não houve capturas, mas sim mortandade para ambos os lados.
Defendemos a tese de que os escravos aceleraram as lutas pela independência
do Brasil. Prova disso é que eles, através das fugas para os quilombos,
diminuíram sensivelmente a produção do país; servindo
as lutas como catalisadores dessa revolução, isto é, dessa
mudança qualitativa, que desemboca na seqüência de lutas pela
independência e vida não escrava. Palmares não é um
simples vão na história! Muitas variáveis, como a Revolução
Francesa de 1789, a influência da Maçonaria e outras instituições
vieram a contribuir para essa instalação de modo irrefutável.
A própria Inglaterra contribuiu para tanto com sua relação
de produção dos seus operários cuja mais valia era quase
inexistente. Quem tanto produzia, em tais condições, jamais teria
ganho financeiro que lhe permitisse consumir. A miséria enquanto futuro...
A revolução industrial da Inglaterra precisava expandir seu comércio
para outros países, principalmente os Estados Unidos da América
do Norte, que desde cedo era um grande concorrente, que mantinha uma relação
de produção capaz de ferir o jogo comercial com a própria
Inglaterra e outros países da Europa já em desenvolvimento.
A derrama de ouro provocou a queda de lucros e consequentemente, surgiu crise
econômica motivada aqui no Brasil por aumento de impostos, provocando escaramuças,
obrigando civis e militares a pegarem em armas para a captura de escravos fugitivos.
Em contrapartida o aprendizado da capoeira estendeu-se entre os crioulos e brancos
surgindo crises práticas, como aconteceu já na primeira república.
Da clandestinidade a capoeira ressurgiu rediviva lá no Recôncavo
baiano, mas dessa vez montada nos pés ligeiros das crianças da Bahia
de Todos os Santos: os Capitães-de-Areia que se tornaram mestres e levaram
a capoeira angola para as feiras e festas de largo ou de padroeiros, onde apanhavam
vinténs e lenços de tijubinas com a boca durante as demonstrações
daquela arte. A capoeira desenvolveu-se através de Mestre Bimba e outros
aficionados e transformou-se em Regional - luta guerreira, adicionando ao jogo
uma seqüência certa com a finalidade de automatizar os movimentos de
defesa. Mestre Bimba e seus companheiros achavam que apanhar dinheiro com
a boca era humilhação. A capoeira entrou nos grêmios das
escolas e foi exaltada por poetas, cantadores, folcloristas, antropólogos
e universitários - seus maiores empreendedores. Estes, hoje, os novos camarados
mostram a "vorta do mundo" pelo mundo afora. O jogo evoluiu das capoeiras
às praças e aos teatros, em um jogo bonito de ver, mansinho ou de
guerra. O gingado diversificou-se, manifestando-se no samba de roda, nos maracatús
e frevos dos carnavais. Onde surgir um mandingueiro, haverá por certo,
berimbau, pandeiro, afoxê, reco-reco, e agogô, provocando reflexo
dinamogênico dos tuntuns na cadência dos atabaques. Aí estará
a grande roda eterna da minha querida capoeira! Em verdadeiro estado de graça
resta-me agradecer a suprema ventura que ora me faculta esta casa - oficina da
lei. Com denodo, honra e galhardia, cumpro com fé a cidadania brasiliense,
que tanto me ufana. Eu sou calaum fé mim, camará.
Iyê, meu irmão! Iyê, meu irmão! Iyê, cidadão!
Viva a Capoeira! Iyê, meu camará!
Milton Freire de Carvalho - Mestre Onça Tigre
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