Arsênio nas Águas
Artigo
de Sergio Ulhoa Dani
Em vez de dar licença para matar, o governo do Estado
de Minas Gerais deveria determinar a suspensão imediata das atividades
da mineração e o início da fase de remediação
e recuperação sócio-ambiental. Se não fizer
isso já, será tarde e caro demais
A Mina Morro do Ouro, em Paracatu, cidade de 90 mil habitantes do noroeste
de Minas Gerais, é a maior mina de ouro do Brasil, uma das maiores
do mundo, e também a que tem o mais baixo teor do metal: apenas
0,4 g Au/tonelada de minério.
Para viabilizar a exploração dessa mina nos próximos
30 anos, a transnacional canadense Kinross Gold Corporation, através
de sua controlada, RPM, adquiriu um enorme moinho SAG que triturará
até 60 milhões de toneladas de minério/ano, a partir
de 2009.
O ouro está presente no minério em associação
com arsenopirita. O processo de moagem, hidratação e oxidação
da arsenopirita libera ouro, arsênio e ácido sulfúrico.
A Kinross minera a arsenopirita, retira o ouro para os canadenses e devolve
o arsênio e o ácido sulfúrico para os brasileiros.
A concentração média de arsênio no minério
da mina Morro do Ouro é de 1000 ppm, o que significa 1 kg de arsênio
para cada tonelada de minério. Até agora os rejeitos da
mineração são depositados em um enorme lago que já
contém algo em torno de 300 milhões de toneladas de rejeitos,
o equivalente a 300 mil toneladas de arsênio. Análises conduzidas
ano passado pela própria mineradora comprovam a presença
de arsênio na lâmina dágua deste lago de rejeitos
já quase totalmente assoreado.
Para se livrar de 1,2 bilhão de toneladas de rejeitos da nova fase
de expansão da mina (equivalentes a 1,2 milhão de toneladas
de arsênio) a Kinross planeja construir uma segunda barragem no
Vale do Machadinho, considerado uma caixa dágua de abastecimento
público da cidade de Paracatu, desde o século 18. Tudo indica
que o governo do Estado de Minas dará a licença de instalação.
As consequências serão devastadoras.
A disposição dos rejeitos de arsenopirita contaminará
o aquífero de modo irreversível, inviabilizando o uso da
água para o consumo humano da cidade, ou provocando uma catástrofe
semelhante à que ocorre em Bangladesh e Bengala Ocidental, caso
a água seja utilizada ao término das atividades de mineração.
Em Bangladesh e Bengala Ocidental, a contaminação das águas
superficiais forçou a população a captar água
subterrânea em aquífero contaminado por arsênio, o
que está provocando arsenicose e câncer em milhões
de pessoas. Esses efeitos do arsênio sobre a saúde humana
tipicamente se manifestam depois de décadas de exposição
crônica a quantidades mínimas de arsênio na água.
Mas o Efeito Kinross não se restringirá a Paracatu
e região. O Córrego Santo Antônio, que foi barrado
para a construção do lago de rejeitos atual da Kinross,
e as nascentes do Ribeirão Santa Rita no Vale do Machadinho, onde
a mineradora pretende instalar o segundo lago de rejeitos, fazem parte
da bacia do Rio São Francisco, considerado o rio da integração
nacional do Brasil.
A bacia do São Francisco, no Estado de Minas Gerais, ocupa o primeiro
lugar em termos de produção de água e contribui com
44,5% da vazão mínima (Q7,10) do Estado. O veneno liberado
pelas atividades de mineração da Kinross acaba chegando
ao Rio São Francisco, de onde se espalha para diversos Estados,
afetando milhões de pessoas, durante décadas, séculos
ou milênios.
A lenta e persistente contaminação das águas superficiais
que percolarão os 1,5 milhões de toneladas de arsênio
dos rejeitos atuais e futuros dessa mina de Paracatu atingirá o
Rio São Francisco nos próximos anos, décadas e séculos,
configurando grave impacto sócio-econômico, ambiental e sanitário,
com precedentes na catástrofe de Bangladesh e Bengala Ocidental.
Em vez de dar licença para matar, o governo do Estado de Minas
Gerais deveria determinar a suspensão imediata das atividades da
mineração e o início da fase de remediação
e recuperação sócio-ambiental. Se não fizer
isso já, será tarde e caro demais. Muito mais caro que todo
o ouro da Kinross.
Sérgio Dani é médico pela UFMG, doutor em medicina
pela Medizinische Hochschule Hannover-Alemanha, livre-docente em genética
pela USP e presidente da Fundação Acangaú. Artigo
enviado pelo autor ao JC e-mail
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