O fogo acompanha o homem desde o aparecimento da espécie no planeta. Do temor ante o vômito dos vulcões e da impotência diante dos raios, o ser humano passou a depender do fogo para variadas funções, o preparo dos alimentos, a produção de calor ambiente, a destruição purificadora de restos e até a fusão de materiais. Tudo isso, mantendo o processo sob controle e restrito aos objetivos apropriados.Um uso, porém, continuaimpondo riscos, pois tende sempre a fugir ao controle ea deixar amargas marcas na paisagem: o fogo aplicado à limpeza de terrenos para uso agrícola. No rodízio das estações, no Norte ou no Sul, há sempre algum lugar ardendo. Por descuido humano ou acidente natural, as chamas deixam rastros dolorosos por onde passam, guiadas pelos ventos, ajudadas pela baixa umidade, alimentadas pela vegetação.Na Era da Ecologia, essas queimadas querem dizer muito mais do que os altos calores que produzem: ajudam a enfraquecer a vida. Atacam o conjunto de elementos vitais que se condensa no conceito de biodiversidade. Mesmo que tudo rebrote, que a vida ali recomece, já não será o mesmo viço, e a cada vez, será menor.No primeiro semestre deste ano, os sensores espaciais registraram no Brasil cerca de 25 mil pontos de fogo, a maioria concentrada nas áreas mais florestadas do país. O pedaço de mata que se foi pode até voltar, mas já não abrigará a mesma intensidade de vida animal e vegetal e a terra sequer terá a mesma fertilidade. E enquanto cresce - se crescer - deixa desprotegida a faixa arborizada vizinha, que sofrerá com alterações de luminosidade, de umidade e calor. O processo de desestruturação é lento, às vezes muito mais lento do que podem perceber algumas gerações de pessoas compelidas a produzir em terras tomadas até de milenares conjuntos da vegetação.E os efeitos se estendem ao clima, ao regime de chuvas, aos ciclos dos rios. As graves constatações dos cientistas quanto ao avanço da desertificação no mundo talvez seja o reconhecimento atual daquele lento processo de destruição, que gerações sucessivas não foram capazes de reconhecer em seus ambientes cada vez mais deteriorados e impossibilitados de recuperação.
Os milhares de focos de todos os tipos e extensões, registrados no
período seco de nosso outono-inverno (março a setembro) em geral
se reduzem no período úmido da primavera-verão (setembro
a março) e os especialistas sabem que a maior umidade é praticamente
uma garantia de que haverá poucos incêndios fora de controle.No
recente II Simpósio Latino-Americano de Controle de Incêndios Florestais,
evento organizado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef), da
Escola Superior de Agicultura "Luiz de Queiroz" (Esalq)/Universidade
de São Paulo (USP), em parceria com outras instituições,
em Piracicaba, o professor Ronaldo Viana Soares, da Universidade Federal do
Paraná, mostrou que as causas mais freqüentes do fogo estão
relacionadas a ações criminosas e também às queimadas
feitas para preparo de solo, além daquelas produzidas em pastagens ou
outras culturas agrícolas com o objetivo de controle fitossanitário.
O estudioso destacou ainda que a situação atual é agravada
pelo período de seca que afeta grande parte do país.No simpósio,
tanto órgãos governamentais, quanto entidades civis e empresas
destacaram a urgência de campanhas de esclarecimento junto à população,
especialmente a rural, com o objetivo de conscientizá-la para atitudes
corretas quanto ao problema dos incêndios.Com atuação de
abrangência nacional existe o projeto PrevFogo, do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e o Proarco,
que integra ações do próprio Ibama na Amazônica,
além da ação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe). Ele utiliza imagens de satélites na detecção de
focos de incêndios e queimadas. "Outras instituições
têm se destacado na pesquisa e divulgação de ações
que visam à minimização desse grave problema, mas ainda
falta maior integração entre essas organizações
para uma divulgação mais ampla e efetiva de prevenção
e combate de incêndios", disse o professor Vanderlei Benedetti, engenheiro
florestal do Ipef e coordenador do evento.Benedetti propôs que as diversas
instituições atuem juntas na educação e prevenção
e apresentem aos agricultores alternativas de preparo da terra sem o uso do
fogo - prática muito difundida em todo o país. A Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já vem desenvolvendo alternativas
práticas para eliminação do uso do fogo no preparo do terreno
em algumas culturas agrícolas. "Tais práticas precisam estar
prontamente disponíveis aos agricultores através de campanhas
nacionais de divulgação", afirmou Benedetti.
Tecnologias
A análise de risco de ocorrência de incêndios florestais
pode ser feita de uma forma eficaz utilizando-se técnicas de geoprocessamento,
como sensoriamento remoto e sistemas de informações geográficas,
na geração de mapas de risco. Esse foi um dos temas abordados
durante o evento, pelo professor Carlos A. Vettorazzi, da Esalq/USP. "Essa
análise é realizada por meio de modelagem cartográfica,
levando-se em conta os fatores envolvidos no risco de início e propagação
de incêndios, tais como: condição da cobertura vegetal,
condições meteorológicas, características do relevo,
atividades antrópicas etc.", explica ele.Com as informações
oferecidas pelos mapas de risco, várias medidas podem ser tomadas para
reduzir a ocorrência de incêndios, como maior vigilância e
restrição do acesso a esses locais, construção de
aceiros preventivos e reorganização das práticas de manejo
(corte, desbaste, limpeza etc.). Segundo o professor Vettorazzi, também
podem ser tomadas medidas de auxílio ao combate, como construção
de estradas de acesso rápido aos locais de risco e alocação
de recursos de combate em pontos estratégicos. Já o professor
Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam),
apontou como um dos riscos a exploração não-manejada de
madeira. Moutinho explicou que, quando uma árvore de valor comercial
é derrubada, 20 outras são danificadas, resultando na abertura
de várias clareiras na mata. "Um maior número de clareiras
por sua vez aumenta a vulnerabilidade da floresta a incêndios rasteiros
durante a época de seca, pois permitem que os raios solares atinjam o
interior da mata, tornando-a mais suscetível ao fogo", explicou.
Conseqüências do desmatamento
Quando a floresta explorada é queimada, geralmente por um fogo rasteiro de poucos centímetros de altura, cerca de 40% das árvores morrem. Se o incêndio volta a ocorrer na mesma área, mais de 70% das árvores são eliminadas. Na Amazônia, entre 10 mil e 15 mil km2 são explorados anualmente para a retirada de madeira, o que representa uma área enorme propícia à ocorrência ao fogo florestal, advertiu o pesquisador. "Este cenário de incêndios florestais poderá ser agravado no futuro se o desmatamento na região prosseguir no atual curso", alerta Moutinho, considerando que quase a metade de toda a chuva que cai na região é produzida pela floresta através da evapotranspiração, e que a substituição da floresta por outros sistemas poderá resultar em sucessivos aumentos dos incêndios florestais.A mudança desse cenário futuro de aumentos na incidência dos incêndios florestais na Amazônia passa, necessariamente, muito mais pelo avanço das técnicas de prevenção do incêndio florestal, aliadas a mudanças de posturas socioeconômicas ligadas ao uso do fogo, do que propriamente pelo seu combate.Moutinho acredita que o principal desafio imposto pela questão dos incêndios na Amazônia é o de entender a interação de fatores que vão além dos aspectos estritamente técnicos de prevenção e combate. "Nesse sentido, é preciso reconhecer que o fogo tem sido um instrumento barato e eficiente de manejo no sistema produtivo e que, por falta de alternativas para sua substituição, vem sendo amplamente utilizado pelos agricultores da Amazônia", afirmou. Um proprietário somente investirá em prevenção, se o investimento gerar benefícios adicionais, que são ainda pequenos, se levado em conta o cenário agrícola da região, ainda de abundância de terra barata e de uma produção extensiva de baixo retorno financeiro.Outro desafio importante, segundo o pesquisador, é o de gerar políticas de prevenção que não dependam tanto da fiscalização. Algumas experiências-piloto têm demonstrado que é possível capacitar comunidades de agricultores de modo a criar um autocontrole no uso do fogo e de propiciar a execução conjunta de programas de prevenção de incêndios florestais.Mas o maior desafio será o de reconhecer a importância do serviço ecológico prestado pela floresta amazônica: manter o clima da região úmido e chuvoso e ajustar o desenvolvimento de modo a preservar tal condição e, assim, manter a paisagem da região livre do fogo, o qual representa hoje um dos principais agentes de alteração da paisagem desse importante ecossistema.