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Criminologia

O DESVIRTUAMENTO DO CARÁTER RESSOCIALIZADOR
DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE

Emanuella Cristina Pereira Fernandes
Advogada e Pós-Graduanda do Curso de Especialização em Criminologia da UFRN.

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"A liberdade é um vinho que embriaga e, portanto, é perigosa. O que é grande não é a liberdade, mas a luta para a sua conquista".GRIEG

I - INTRODUÇÃO

Quando do surgimento da Sociedade Política, os indivíduos que integravam o grupamento social abdicaram de suas liberdades individuais e firmaram um pacto social, pelo qual todos ficariam protegidos por um ente político responsável pelo bem de toda a coletividade. Nas palavras brilhantes de Rousseau (1) eis as conseqüências de tal acordo: "o que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que tenta e que pode alcançar; o que vem a ganhar é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui."
O Estado, ao receber o poder-dever de realizar o bem comum, apareceu como um poder de mando, como governo e dominação. Instituiu uma nova ordem, com normas rígidas a que todos estavam submetidos. O poder, então, é detido e centralizado pelo Estado. Isto em virtude do medo. O medo do indivíduo diante de outro, mais forte e mais violento; o medo da massa social frente ao guerreiro que quer impor a sua vontade aos demais. O medo do homem, não apenas como indivíduo, como família, mas como grupo social, e por isso, ele criou o poder e entregou-o à Sociedade Política.
Para a manutenção da harmonia na sociedade, o Estado impôs regras de conduta aos membros do grupo e previu sanções para aqueles que descumprissem as normas. O Direito normativo é o direito racional. É o Direito racional por determinar uma série de ações em relação a determinados fins. Portanto, as ações sociais determinadas pela legalidade são frutos de uma normatização social advinda de uma rede de poderes velados pelo Direito.
Contudo, a origem das penas é anterior à própria criação da Sociedade Organizada, remontando aos mais antigos grupamentos de homens, que lhe atribuíam um caráter divino, pois o descumprimento às obrigações devidas aos "seres sobrenaturais" mereciam graves castigos, como a tortura e a morte. Era a repressão do crime como forma de satisfação aos deuses pela ofensa praticada no grupo.
Já com o Estado forte, este centralizou para si o direito de punir os infratores das suas normas. Durante muito tempo o Estado tornou-se um severo repressor daqueles que desobedeciam ao ordenamento. A Lei de Talião impunha a reação à ofensa a um mal idêntico ao praticado ("sangue por sangue, olho por olho, dente por dente").
A norma passou a carregar um atributo de valorização com relação a determinada conduta socialmente aceita, de modo a ser o fiel da balança entre o normal e o anormal ou patológico. Cria-se, desta feita, um arcabouço legal, em forma e códigos e resoluções normativas, baseado num tipo mediano de homem, escolhido dentre aqueles dos grupos dominantes de então, o tão criticado "homem médio".
Assim, num primeiro momento, o soberano agia de forma discricionária e autocrática, desvinculada de um ordenamento jurídico legítimo, afeto à idéia de justiça. E posteriormente, a infração tomou uma noção de direito e a pena uma sanção legal, embora ainda com um caráter retributivo mais aflorado.
O sistema da repressão criminal veio mesmo a desenvolver-se no período humanitário, no século XVIII, que embora ainda trouxesse a idéia da retribuição pelo delito cometido, foi influenciado por pensadores como Cesare Beccaria, e quando ao invés de adotar-se a severidade das penas, numa época em que a tortura era a forma a mais comum de se obter a confissão do réu e a sua conseqüente punição, buscou-se defender os direitos fundamentais do acusado.
As normas tomam domínios cada vez mais diferenciados da esfera jurídica. Elas abarcam a medicina, a psiquiatria e as Ciências Sociais. Tudo isto se mistura num conhecimento do final do século XIX: a criminologia. O próprio discurso da criminologia é o domínio da antropometria lombrosiana, absurda maneira de caracterizar e conhecer um tipo perfeito de criminoso mediante um padrão fornecido pelo domínio do conhecimento das ciências supra citadas. Desta maneira, as penalidades e mesmo a sexualidade se tornam instituições de ordem normativa que caracterizam a modernidade das relações entre saberes e poderes.
Apenas neste século, com o movimento da Nova Defesa Social, encabeçado por Marc Ancel, foi que a política criminal, ciência na qual o Estado deve se basear para prevenir e reprimir a delinqüência, tomou um novo rumo, procurando-se cada vez mais a reinserção do criminoso de volta à sociedade e a prevenção do crime. Na preciosa lição do autor supracitado (2) : "Trata-se, de fato, segundo as novas concepções, de garantir um proteção eficaz da comunidade graças à apreciação das condições em que o delito foi praticado, da situação pessoal do delinqüente, de suas possibilidades e probabilidades de recuperação e dos recursos morais e psicológicos com que se pode contar, com vistas a um verdadeiro tratamento de ressocialização."


II - A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE COMO PRINCIPAL MEIO DE PUNIÇÃO PELO COMETIMENTO DO FATO DELITUOSO

A pena de prisão deveria ser utilizada como último recurso para a punição do condenado, é o que preconiza o Direito Penal Mínimo. Entretanto, pela falta de estrutura do Estado, ela tem servido para retirar o indivíduo infrator do âmbito social e garantir segurança aos demais. Contudo, a pena privativa de liberdade não é apenas um meio de afastar aquele que cometeu um crime do seio da sociedade e mantê-lo à margem do convívio social, em virtude da sua "culpabilidade" e "periculosidade". Deve ser também uma forma de dar-lhe condições para que se recupere e volte à vida em comunidade.
São estas, inclusive, as propostas oficiais de finalidade da pena, quais sejam: antes de tudo, a punição retributiva do mal causado pelo criminoso; a prevenção da prática de novos delitos, de modo a intimidar o delinqüente para não mais cometê-los, bem como os demais integrantes da sociedade; e por fim, transformar o preso de criminoso em não-criminoso, ou seja, ressocializá-lo.
Hilde Kaufmann observa bem os males que o encarceramento provoca no preso e as dificuldades de um retorno à vida social , ao afirmar que "o preso é incapaz de viver em sociedade com outros indivíduos, por se compenetrar tão profundamente na cultura carcerária, o que ocorre com o preso de longa duração. A prisonização constitui grave problema que aprofunda as tendências criminais e anti-sociais."
O isolamento social é um fator irreversível para o homem, que é um animal, por sua própria natureza, social. Della Torre aponta as conseqüências trazidas para o homem nestes casos (3) : "depois que o indivíduo está socializado, integrado à sociedade, se sofrer isolamento durante longo período poderá ocorrer: diminuição das funções mentais (torna-se imbecil ou melancólico) ou mesmo loucura (está sujeito a delírios, alucinações e até desintegração mental). Há inúmeros casos de prisioneiros que enlouqueceram nas prisões ou que quando de lá saíram já não eram os mesmos."
Enquanto os estabelecimentos disciplinares se multiplicam, os mecanismos disciplinares se institucionalizam, decompondo-se em processos flexíveis de controle que se podem transferir e adaptar. Isto significa, em termos concretos, a multiplicação de prisões ao lado da proliferação de medidas que visam cada vez mais manter unificada a sociedade.
A generalização do esquema e das técnicas disciplinares não apenas tornou possível o advento da prisão, como o discurso de que o isolacionismo deixaria a paisagem urbana mais unificada e harmônica. Este discurso disciplinador visa, antes de mais nada, a reprodução da estrutura familiar nucleada, do Estado do welfare, e da democracia representativa em forma de eleições. Somos pois disciplinados, vigiados ou punidos quando nos recusamos aos contratos sociais, à política de impostos ou ao não exercício "democrático" do voto.
Foucault descreve três grandes instrumentos disciplinares, reguladores de uma rede de poderes: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. A norma passaria, assim, a ser regida por fundamentos do vigiar e do punir, escolhidos mediante um exame prévio socialmente acatado. Torna-se para o Estado moderno muito mais vantajoso economicamente vigiar do que punir. Se o vigiar não é suficiente, lança-se mão do punir através de sanções normalizadoras, mesmo que excludentes e sumárias. Em nome da norma institucionalizada enchem-se os porões das prisões.
Mesmo com as tentativas de sua abolição, como fez-se com a tortura e a pena de morte, é, ainda, a pena privativa de liberdade a espinha dorsal de todo o sistema penal. Apenas, procura-se aplicá-la com um caráter mais excepcional, em consonância com a Teoria da Intervenção Mínima, até porque ela não se enquadra no Estado Democrático de Direito, nem no objetivo ressocializador da pena, cujo elemento nuclear é o desenvolvimento da personalidade e dignidade da pessoa. Mas, é tida como a única sanção aplicável em casos de grave criminalidade e de multirreincidência.
Para fazer da prisão uma possibilidade de egresso da vida delituosa, os presídios têm que oferecer certas condições, daí porque a necessidade de classificação dos detentos. Faz-se imperioso a individualização do cumprimento das penas, significando a aplicação justa do tratamento dado ao preso, de acordo com o que ele é.
Dever-se-ia realizar, de fato, o exame criminológico para a obtenção do conhecimento da personalidade do delinqüente, de forma a diagnosticá-lo, objetivando a prognose de sua conduta futura e o programa de tratamento ou plano de readaptação social a lhe ser aplicado, para a sua individualização penitenciária e judiciária.
A ausência de critérios acomete, por exemplo, o preso acidental, que, por uma circunstância adversa, ingressa na prática delituosa e, ao adentrar na estrutura prisional, enterra lá suas esperanças de liberdade. Isso motivado pelo acúmulo irregular de encarcerados das mais diversas origens e apenados de acordo com os mais diferentes crimes.
Donald Clemmer (4) aponta a estrutura da sociedade prisional, uma sociedade dentro da sociedade: "O mundo prisional é um mundo atomizado. Seus membros são como átomos a agir reciprocamente em confusão... Não há definidos objetivos comunais. Não há um consenso comum para um fim comum. O conflito dos internos com a administração e a oposição à sociedade livre estão em degrau apenas ligeiramente superior ao conflito e oposição entre eles mesmos... É um mundo de 'Eu', 'mim', e 'meu' antes que de 'nosso', 'seus', 'seu'."
Como podem, então, ser reintegrados ao meio social se são rejeitados por esta sociedade, se são confinados à força, privados de autonomia de vontade, de recursos, de bens de natureza pessoal, de relações heterossexuais, da família, da segurança, se são submetidos a um regime de controle quase total, tendo de se adeqüar às condições de vida que lhe são impostas?
A Constituição Federal procura velar pela integridade física e dignidade dos aprisionados, tendo sido expressa ao assegurar "o respeito à integridade física dos presos" (art. 5º, XLIX). As Cartas anteriores já o consignavam, com pouca eficácia, referindo-se habitualmente a várias formas de agressão física a presos, a fim de extrair-lhes confissões de crimes. Ademais, a Carta Magna determinou que "ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III). Para dotar tais normas de aplicabilidade plena, preordenaram-se as várias garantias penais adequadas, como o dever de comunicar, imediatamente, ao juiz competente e à família ou à pessoa indicada, a prisão de qualquer um e o local onde esteja confinado ; e o dever da autoridade policial de informar ao preso os seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, garantida a assistência de advogado; e o direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão e interrogatório.
A realidade fática, no entanto, é bem distinta. Os apenados são lançados à prisão sem qualquer critério de classificação, sendo abandonados pelo Estado e mantidos na ociosidade e no ódio pela sociedade que ali os flagelou. Ficam a passar pelas suas mentes uma forma de vingança por tudo a que são submetidos.
É preciso a transformação do sistema para que a reforma do condenado seja propiciada por instrumentos como a educação e o trabalho, de modo a dar-lhe condições de levar uma vida digna quando sair do estabelecimento prisional, e evitar que o cárcere seja mais penoso do que deve ser.
Isso até mesmo para que a pena de prisão entre em consonância com os princípios do direito penitenciário, quais sejam: a proteção dos direitos humanos do preso; o preso como membro da sociedade; a participação ativa do sentenciado na questão da reeducação e na sua reinserção social; a efetiva colaboração da comunidade no tratamento penitenciário; e a formação dos encarcerados de modo que reaprendam o exercício da cidadania e o respeito ao ordenamento legal.
Tendo a pena privativa de liberdade o objetivo não apenas de afastar o criminoso da sociedade, mas, sobretudo, de excluí-lo com a finalidade de ressocializá-lo, note-se que a pena de prisão atinge o objetivo exatamente inverso: ao adentrar no presídio, o apenado assume o seu papel social de um ser marginalizado, adquirindo as atitudes de um preso habitual e desenvolvendo cada vez mais a tendência criminosa, ao invés de anulá-la.
Deve-se ter em mente que a pena de prisão é incapaz de trazer o condenado de volta ao convívio social considerado normal, sob o manto da lei e da moral. Por isso, a finalidade ressocializadora de tal pena é utópica. Citando Rupert Cross, Augusto Thompson (op. cit., pág. 96) conclui: "A ilusão de que a pena de prisão pode ser reformativa mostra-se altamente perniciosa, pois, enquanto permanecemos gravitando em torno dessa falácia, abstemo-nos de examinar seriamente outras viáveis soluções para o problema penal."

III - CONCLUSÃO

A tendência, então, é buscar outras alternativas para sancionar os criminosos, que não isolá-los socialmente. Isto porque a pena de prisão determina a perda da liberdade e da igualdade, que derivam da dignidade humana. E a perda dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade representa a degradação da pessoa humana, assim como a tortura e o tratamento desumano, que hoje são expressamente proibidos pela Constituição Federal.
A Política Criminal atual tem se endereçado à desinstitucionalização da execução penal, transferindo a função de reeducação do agente de custódia, segurança e controle para a equipe de tratamento comunitário ou alternativo. As medidas alternativas, resultantes da crise na prisão, sobretudo nas hipóteses de pena de curta duração, permitem que o condenado cumpra a sua pena junto à família e ao emprego, eliminando a contaminação carcerária, diminuindo a superpopulação prisional e suprimindo a contradição entre segurança e reeducação.
Além do benefício para o criminoso, ao possibilitar a sua reintegração no grupo social, as penas alternativas, como a restritiva de direitos, a prestação de serviços à comunidade, pena pecuniária, a limitação de fim de semana, são altamente benéficas para o Estado, pois a prisão é altamente dispendiosa para a sociedade, sendo o custo de um apenado maior que o de um estudante universitário, daí porque o prejuízo para os recursos humanos e societários.
O sucateamento da máquina penitenciária somado ao despreparo dos que lidam no universo carcerário e à omissão do Estado e da própria sociedade compõem o quadro da realidade penal brasileira. Os avanços concernentes à aplicação de medidas alternativas à privação da liberdade ainda são diminutos face ao tamanho da crise na execução penal.
As penas privativas de liberdade demonstram que o que se pratica por aí é um flagrante desatendimento aos direitos humanos. A sociedade, tanto quanto as autoridades competentes, precisam sair da penumbra da indefinição, e traçar juntas, diretrizes de atuação concretas no combate a este tipo de absurdo. Os direitos humanos, antes de meros enunciados formais, têm de ser encarados como as verdadeiras e vigorosas premissas de um novo milênio.

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Nome do artigo: O DESVIRTUAMENTO DO CARÁTER RESSOCIALIZADOR DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE
Autora: Emanuella Cristina Pereira Fernandes
Editora: Vozes
Ano: 2006
Edição: 18ª
Cidade: São Paulo
Páginas: 6